quinta-feira, 19 de maio de 2011

As vestes da alma


Como os campos
                                                                        Marina Colasanti 

Um  sabio era professor de alguns jovens estudiosos. Um dia, com a chegada  do outono, eles foram perguntar ao professor que roupa deveriam usar com a proximidade do frio. “Vistam-se como os campos”,  respondeu o sabio. Os alunos entao subiram a uma colina e durante dias olharam os campos. Quando desceram, foram para a cidade, onde compraram tecidos de muitas cores e fios.  Sob o olhar do sabio, abriram os rolos de seda,  cortaram quadrados de veludo, emendaram com tiras de cetim. Aos poucos, foram criando longas vestes como os campos arados, com o vivo verde da primavera.  Entremearam fios de ouro no amarelo dos trigais, fios de prata no alagado das chuvas e chegaram ao branco brilhante da neve, 
As vestes suntuosas estendiam-se como mantos. 
O sabio a tudo assistia. E nada falava.
Apenas um jovem n’ao havia feito sua roupa. Esperava que o algod’ao estivesse em flor para colhe-lo. E quando teve os tufos, os fiou. E quando teve os fios, os teceu. Depois vestiu sua roupa branca e foi para o campo trabalhar. Arou e plantou. Muitas e muitas vezes sujou-se de terra. Manchou-se com o sumo das frutas e da seiva das plantas, A roupa j’a n’ao era branca, embora ele a lavassse no rio. Plantou e colheu. A roupa rasgou-se, o tecido puiu-se. O jovem emendou os ragos com fios de la, costurou e remendou onde o tecido cedia. E quando a neve veio, prendeu em sua roupa mangas mais grossas para se aquecer.
Agora, a roupa do jovem era de tantos pedacos que ninguem mais poderia dizer como tinha come’cado. E estando ele um dia no campo, com os p’es afundados na terra para receber a primavera, um p’assaro o confundiu com o campo e veio pousar em seu ombro. Ciscou de leve entre os fios, sacudiu as penas. Depois levantou a cabe’ca e come’cou a cantar.
Ao longe, o sabio, que a tudo olhava, sorriu.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Todas as Vidas


 Procurei uma história sobre encontros. Existem muitas. Mas deparei-me com Cora Coralina, meiga, magnífica, verdadeira, falando de um encontro consigo mesma. Fiquei encantada com a força das muitas mulheres, vividas em uma só, neste poema.   Era o que procurava.

Todas as vidas.
                    
         Cora Coralina

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.
Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre
seu triste fado.
Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras!

sábado, 7 de maio de 2011

Amado ...

Hoje contei histórias no programa Que História é Essa, da "sensacional" Elaine Gomes. Adorei, fiquei maravilhada com a versão da Moça Tecelã, de Marina Colasanti, que Elaine delicadamente contou, tecendo uma manta de tricô. Foi lindo, lindo. Depois, para continuar com Marina Colasanti, contei O Moço que não  Tinha Nome, para mim um dos mais belos contos dessa maravilhosa escritora. Sei que vão gostar.

O Moço Que Não Tinha NomeEra um moço que não tinha nome. Nem nunca tinha tido. Um moço que, não tendo nome, também não tinha rosto.
-Psiu! - chamavam-no as pessoas. E ele, acostumado desde pequeno, atendia.
Porém, quando se aproximava, quem o tinha chamado via em lugar do rosto dele seu próprio rosto refletido, como num espelho. E enchia-se de espanto.
Assim, sem olhos ou sorriso que fossem seus, ninguém conseguia escolher um nome que ele se ajustasse, tornando-o único, impossível de ser confundido com qualquer outro. Era muita ausência para ele carregar. E cedo decidiu que, tão logo estivesse crescido, dono enfim da sua vida, partiria à procura do rosto que lhe pertencia e que, certamente, havia de estar perdido em alguma parte do mundo.
Chegada a idade, juntou suas coisas, saiu da aldeia e começou a andar.
Andou e andou. Nos castelos que lhe davam hospedagem, examinava ansioso os quadros e as tapeçarias, aproximava-se atento das esculturas, mesmo as mais miúdas que enfeitavam às vezes uma sopeira de prata ou o cabo de um talher. Quem sabe, entre tantos cavalheiros retratados, entrte tantos homens pintados e bordados, não estaria algum cujo rosto, por engano ou descuido, fosse o seu? Até sobre os bastidores das damas se debruçava, na esperança de que o ponto que vinham de fazer estivesse arrematando um nariz, o traço de uma sobrancelha que a ele caberia.
Desse modo viajava, fazendo seu rumo como quem atravessa um rio pulando de pedra em pedra.
Passava de uma cidade a outra, de uma casa a outra, sempre procurando, nas famílias que se reuniam ao redor das lareiras, nas multidões das feiras, e até nos broches de esmalte que enfeitavam os decotes, nos camafeus e nas pedras entalhadas dos anéis.
Sem nunca, naqueles anos todos, afastar seu caminho da procura.
E nesse caminho, um dia, encontrou uma moça que voltava da fonte.
Ia tão atenta para não entortar o cântaro equilibrado no alto da cabeça, que nem o viu chegar pela trilha. E quando ele se aproximou, oferecendo-se para carregar o cântaro, foi com surpresa agradecida que encarou o rosto vazio. Mais do que com espanto. Andando devagar, para prolongar a caminhada, o moço acompanhou-a até em casa. Mas na manhã seguinte, bem cedo, foi esperá-la na fonte. E quando ela chegou, novamente se ofereceu para carregar o cântaro.
Assim aconteceu também no outro dia, e nos que vieram depois. Agora já se demoravam sentados à beira da nascente, conversando sem pressa, enquanto o tempo escorria junto com o regato. E a cada novo encontro, ela olhava os próprios olhos refletidos nele e os via ficarem mais brilhantes, olhava a sua boca e só lhe via sorrisos.
Pouco a pouco, a ausência do rosto foi perdendo a importância. O moço tinha tantas coisas para contar, tanta doçura na voz, que ela passou a achá-lo mais e mais bonito. Era como se nada lhe faltasse.
Nem mesmo o nome. Pois não precisava chamá-lo, já que sempre o encontrava à sua espera, não importava a hora em que chegasse.
Porém, na fonte, começava a boiar as primeiras folhas mortas. O regato, que tinha levado o verão, lentamente levou o outono. E afinal o inverno chegou, engolindo as tardes em seu ventre frio. Breve a fonte gelaria. E a moça percebeu que, sem água para buscar, não teria mais desculpa para sair de casa.
Envolta no xale, ainda foi à fonte durante alguns dias. Mas naquela manhã em que as beiradas do regato começavam a fazer-se de cristal, o medo de perder o moço atravessou-a como um vento. Quis retê-lo, chamá-lo. Em ânsia estendeu-lhe as mãos. E quase sem sentir, num sopro, Amado! foi o nome que lhe deu.
Ondejou seu reflexo no rosto do moço.
Lentamente, seus olhos espelhados perderam a nitidez, desfez-se o contorno dos lábios. Naquele vazio, só restava uma névoa. E na névoa, trazidos de longe pelo chamado de um nome, começaram a aflorar duas sobrancelhas espessas, depois a aresta de um nariz, a sólida linha de um queixo, a ampla testa.
Traços cada vez mais nítidos, desenhando o rosto enfim encontrado.
Pingentes de gelo formavam-se nas folhas.
Adensavam-se as nuvens. Mas ele, o homem que agora tinha rosto e nome, sorria como um sol.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

E viva a maturidade !

Contei histórias no Senac. Foram várias turmas de alunos, todos adultos, muitos até bem mais velhos do que eu. Falamos sobre maturidade, generosidade, amor e sobre doar-se... Tudo foi importante para mim, mas uma coisa tocou mais fundo. Foi um texto que eu havia escolhido para entregar para eles ao final. Li este texto duas vezes, em momentos diferentes. Me emocionei as duas vezes.

O Valioso Tempo dos Maduros
Mário de Andrade 

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.
Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas.
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço. Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte. Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas que, apesar da idade cronológica, são imaturas. Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário geral do coral.
As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa...
Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana, que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita antes da hora, não foge de sua mortalidade...
Só há que caminhar perto de coisas e pessoas de verdade.
O essencial faz a vida valer à pena.
E para mim, basta o essencial!