segunda-feira, 25 de junho de 2012

O caso do espelho

Ando falando muito da busca de nossa identidade. Costumo contar essa história em cursos, e aí digo que nos dá a exata dimensão daquilo que queremos ser. Na verdade esse é um muito bem humorado conto tradicional chinês, adaptado pelo fantástico Ricardo Azevedo. Só poderia dar uma boa história. Portanto aqui vai.

O caso do Espelho

Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da mata. Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos: 
- Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?
- Isso é um espelho - explicou o dono da loja.
- Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai.
Os olhos do homem ficaram molhados.
- O senhor conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante.
O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira.
- É não! - respondeu o outro. - Isso é o retrato do meu pai. É ele sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito?
O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho. Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira. A mulher ficou só olhando.
No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.
- Ah, meu Deus! — gritava ela desnorteada. - É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu!
- Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não tinha feito nem a comida.
- Que foi isso, mulher?
- Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?
- Que retrato? - perguntou o marido, surpreso.
- Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!
O homem não estava entendendo nada.
- Mas aquilo é o retrato do meu pai!
Indignada, a mulher colocou as mãos no peito: - Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa?
A discussão fervia feito água na chaleira.
- Velho lazarento coisa nenhuma! - gritou o homem, ofendido.
A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar pra casa.
- Que é isso, menina?
- Aquele cafajeste arranjou outra!
- Ela ficou maluca - berrou o homem, de cara amarrada.
- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!
A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato. Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada.
- Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu já vi até hoje!
E completou, feliz, abraçando a filha: 
- Fica tranqüila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!

sábado, 23 de junho de 2012

Clarissa e a ancestralidade


O tema ancestralidade ainda ferve em minhas veias. Minha voz não é minha voz, é a voz de minha ancestralidade. Ela está em mim e me faz contar histórias. Histórias de meus antepassados, histórias do meu sangue e de minha alma. Acredito piamente nisso. A analista junguiana, escritora e contadora de histórias, Clarissa Pinkola Estés (1992), em seu livro Mulheres que correm como lobos, coloca-se como “guardiã das histórias”, dadas a sua origem familiar composta por uma longa linhagem de contadoras e a infância cercada por pessoas oriundas de vários países da Europa e do México. Segundo ela, os componentes dessa família de laços de sangue e agregados não tinham instrução acadêmica alguma, mas carregavam uma extrema sabedoria e uma valiosa tradição quase que exclusivamente oral. Também acredito profundamente nisso. E é Clarissa quem nos dá uma das mais belas imagens sobre a ancestralidade das histórias nesse trecho do livro:

Uma vez sonhei que estava contando histórias e sentia alguém dando tapinhas no meu pé para me incentivar. Olhei para baixo e vi que estava em pé nos ombros de uma velha que segurava meus tornozelos e sorria para mim. “Não, não”, disse-lhe eu. “Venha subir nos meus ombros, já que a senhora é velha e eu sou nova”. “Nada disso”, insistiu ela. “É assim que deve ser”. Percebi que ela também estava em pé nos ombros de uma mulher ainda mais velha do que ela, que estava nos ombros de uma mulher usando manto, que estava nos ombros de outra criatura, que estava nos ombros... Acreditei no que disse a velha do sonho a respeito do como as coisas devem ser. A energia para contar histórias vem daquelas que já se foram. Contar ou ouvir histórias deriva sua energia de uma altíssima coluna de seres humanos interligados através do tempo e do espaço, sofisticadamente trajados com farrapos, mantos ou com a nudez de sua época, e repletos a ponto de transbordarem de vida ainda sendo vivida. Se existe uma única fonte e um espírito das histórias ela está nessa longa corrente de seres humanos.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Ancestralidade e o arroz de Palma


Arroz de Palma é o primeiro romance do dramaturgo Francisco Azevedo. É também o primeiro romance a tratar da imigração portuguesa para o Brasil no século XX. Nele, o autor traz a ancestralidade, ao narrar a saga de uma família que vem para o Brasil em busca de uma vida melhor. O arroz do título foi jogado no casamento dos patriarcas, em 1908, e o grão será o fio condutor da história, como migalhas jogadas no labirinto da memória. Ao falar do livro e do tema, Azevedo diz “acredito, sim, nessa necessidade de olhar para trás, para as raízes. Hoje, quando tudo é questionado e se torna relativo, precisamos de pontos de referência, modelos que nos transmitam um mínimo de certeza. Ir às raízes, mais que olhar para trás, é olhar para o fundo, para o que não está na superfície. É olhar simbolicamente para o que nos alimenta. É, enfim, tentar entender o que se passa conosco com base também na experiência ancestral, tão rica e tão vasta”. Ele diz exatamente o que venho buscando com minhas histórias e pesquisas ultimamente. Abaixo, trecho do livro que parece dizer tudo sobre essa intrincada instituição chamada família. É belo. E para ser degustado serenamente. 


Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes.
Reunir  todos é um problema... Não é para qualquer um.
Os truques, os segredos, o imprevisível.
Às vezes, dá até vontade de desistir...
Mas a vida... sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite.
O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares.
Súbito, feito milagre, a família está servida.
Fulana sai a mais inteligente de todas.
Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade.
Sicrano, quem diria? Solou, endureceu, murchou antes do tempo.
Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante.
Aquele, o que surpreendeu e foi morar longe.
Ela, a mais apaixonada.
A outra, a mais consistente...
Já estão aí? Todos? Ótimo.
Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados.
Logo, logo, você também estará cheirando a alho e cebola.
Não se envergonhe de chorar.  Família é prato que emociona.
E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza.
Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco.
Mas, se misturadas com delicadeza, estas especiarias, que quase sempre vêm da África e do Oriente
e nos parecem estranhas ao paladar tornam a família muito mais colorida,interessante e saborosa.
Atenção também com os pesos e as medidas.
Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto: é um verdadeiro desastre.
Família é prato extremamente sensível.
Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido.
Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional.
Principalmente na hora que se decide meter a colher.
Saber meter a colher é verdadeira arte.
Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora errada.
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita.
Bobagem. Tudo ilusão.
Não existe Família à Oswaldo Aranha; Família à Rossini, Família à Belle Manière;
Família ao Molho Pardo (em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria).
Família é afinidade, é à Moda da Casa.
E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.
Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas.
Há também as que não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha.
Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
Enfim, receita de família não se copia, se inventa.  A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel.
Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu.
O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer.
Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas.
Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo.
Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete. 


quarta-feira, 13 de junho de 2012

Maria Eduarda e outros amigos



Foi uma noite linda! Um auditório lotado nos ouviu. E contamos nossas histórias lindamente. É porque a emoção era tanta, nossos livros chegando, pessoas queridas conosco, sonhos se realizando e, claro, muitas histórias guardadas em nossas almas e corações. Não poderia ser melhor. Foi o primeiro lançamento de Maria Eduarda, a menina que devorou o mundo. Digo primeiro, porque outros eventos já estão marcados: o próximo será no dia 22 de julho, na Livraria da Vila da Alameda Lorena. Depois, no dia 29 de julho, na mesma livraria, na loja da rua Fradique Coutinho. Vejam se não é para ficar muito feliz!

quarta-feira, 6 de junho de 2012

E Maria Eduarda chegou !!

O lançamento do meu terceiro livro será hoje no teatro Juca Chaves, a partir das das 20h30. Espero todos lá.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Essa história eu conto assim

E tantos outros contadores de histórias contam de várias outras maneiras. Mas, colocamos em um livro, exatamente com este título, o nosso jeito de contar. Nesse livro, estamos eu e os queridos amigos Andrea Souza, Berenice de Fátima, Ivani Magalhães, Rosane Pamplona e João Luiz do Couto, que também é o organizador do volume, contando histórias deliciosas. É mais um dos volumes que será lançado nesta quarta-feira, dia 6, no Teatro Juca Chaves. Pensamos que esta é mais uma forma de contribuir com essa maravilhosa tarefa de contar histórias e eternizar esse ofício. Afinal, como diz Clarissa Pinkola Estés em O Dom da História,  "enquanto restar uma criatura que saiba contar a história e, enquanto com o fato de ela ser repetida, os poderes maiores do amor, da generosidade e da perseverança forem continuamente invocados, eu garanto que será ... o suficiente".  Nós esperamos que vocês todos gostem desse livro.