terça-feira, 28 de agosto de 2012

Doce sabor da transgressão

Delícia poder deixar de ser a responsável por tudo e sair aprontando. É o que a história abaixo, do livro "Sete Histórias pra Contar", de Adriana Falcão, nos permite fazer.


Historinha ao Contrário

 Esta é uma história de pai e mãe.
Por que todo pai, coitado, tem que ter cara de pai, tem que usar roupa de pai, tem que dizer frases de pai, tem que fazer tudo de pai, mesmo que esteja com vontade de raspar a panela de brigadeiro?
E por que mãe tem que ser mãe o dia inteiro sem parar, para lá e para cá, toc, toc, com aqueles sapatos de mãe, mesmo que esteja a fim de dar uma cambalhota? Ah, não! 
Um dia, um pai e uma mãe resolveram fazer tudo ao contrário. O pai fechou o jornal, a mãe abriu um sorriso e lá se foram os dois, pulando de um pé só, tomar banho de chuva.
Dançaram que nem dois doidos na praça.
Jogaram muitas pedras nas poças.
Cataram 189 conchas na praia, sendo que 52 estavam esburacadas, 27 eram bastante simpáticas, 18 eram bem bonitas e uma era linda de guardar!
Fizeram castelos na areia enquanto argumentavam com as ondas que esse negócio de derrubar castelo dos outros é uma falta de educação bem molhada.
Comeram rosquinhas e estouraram os sacos.
Contaram os carros que passavam: 876, 877, 879 e perderam a conta.
Discordaram do Sol quando ele começou a se esconder do dia. Em seguida, porém, concordaram que azul-escuro pode ser tão bonito quanto azul-celeste, ainda mais quando aparece uma Lua no meio.
Procuraram, em vão, discos voadores e estrelas cadentes. Só viram mesmo uma andorinha, a quem fizeram um pedido, mas era segredo.
Acharam graça de tudo.
Acharam graça de nada.
Perderam a hora.
Voltaram caminhando só pelos desenhos pretos da calçada.
Apostaram corrida até a esquina e ela ganhou (ou talvez ele tenha deixado que ela ganhasse).
Chegaram em casa felizes, suados, sujos e cansados. Para espanto dos três filhos, que estavam esperando na janela e que logo perguntaram: Vocês podem explicar o que aconteceu???
Como eles não sabiam explicar, pediram uma licencinha e foram para a cozinha comer cachorro-quente, com muita mostarda, maionese e ketchup.
Fizeram uma bagunça danada na cozinha e nem limparam ...

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Mágica de Geórgia


Foi assim: amigos queridos, amor de filhas, livros expostos e histórias para contar.Tudo isso no último e absurdamente lotado dia de Bienal do Livro, em São Paulo. Fiquei emocionada, porque estar lá com meus livros foi uma espécie de resumo de tudo o que venho construindo ao longo desses anos e que, em 2012, começa a materializar-se. E, como se fosse pouco, ao final, quase na hora de ir embora, chega Geórgia. Linda, dona de um sorriso encantador, com seus dentinhos da frente quase cobrindo uma recém janelinha. Entrou no estande e, decidida, pegou um livro e mostrou para a mãe. "É esse aqui", disse ela, vitoriosa. Era o livro Mágica na loja de tintas, lançado em março deste ano."Ah, esse", disse a mãe (acho que era a mãe). E olhando para mim, completou "Andei a Bienal inteira, porque ela disse que queria esse livro e não sabia onde tinha visto". Fiquei surpresa e imensamente feliz. A menina sabia que queria aquele livro (o meu livro, ai meu Deus...), procurou por ele e não teve dúvidas quando o encontrou! Caramba, isso não acontece todos os dias... Eu disse para a mãe que eu era a autora. E aí o sorriso da Geórgia tornou-se infinito. Era só o sorriso dela que existia para mim naquele momento. A mãe pediu para eu esperar um pouco, ela traria o livro para eu fazer a dedicatória. Esperei por ela com o coração pulando. Quando Geórgia chegou com o livro, como um troféu conquistado, abaixei-me na altura do seu olhar e agradeci, comovida. E ela, com aquela magia infantil e iluminada, me disse "obrigada também". Ela sentou-se ao meu lado e continuou sorrindo e eu, quase chorando, perguntei se podia lhe dar um abraço e um beijo. Ela então pulou no meu pescoço. Pedi para tirar uma foto e ela posou sorrindo. Alguém pediu para que ela posasse com o livro na mão, ela sorriu mais ainda. E a mãe (ainda estou achando que pode ser a mãe, que me pareceu conhecida de tempos idos) disse "põe na frente, mostra a capa, assim eles podem usar para divulgação".  Geórgia me deu um grande presente ontem. Nem sei explicar a dimensão daquele sorriso e da atitude da menina. Na minha alegria, com um misto de surpresa e orgulho, nem perguntei nada sobre como conhecia o livro, quem era ela, etc e tal. Pareciam detalhes que poderiam estragar aquele mágico momento. Então fiquei sentada do lado dela, memorizando tudo aquilo. E a foto nem é para divulgação não. É para que eu nunca me esqueça de Geórgia. É para eu saber que vale a pena continuar, que o caminho é esse mesmo. É também para que eu possa olhar novamente seus olhinhos e agradecer pelo encantamento que sua presença me causou. Obrigada de coração, Geórgia.


terça-feira, 14 de agosto de 2012

Plantei um pé de estrela!


Trilhares com pés de estrelas



 Escrevi Pé de Estrelas há um tempo. Até já postei aqui no blog. Mas, ao ouvir Trilhares, da Palavra Cantada, fui em busca deste miniconto. Experimente ler e depois ouvir a trilha, linda e delicada. Você pode fazer nesta ordem, ou vice-versa. Seja como for, para mim, é tempo de plantar estrelas ! Então aqui estão elas para ampliar a luz de nossas vidas.

Pé de estrela !  Quem plantou ?

Havia ventado tanto, que as emoções foram todas levadas junto com o vento. Emoções, segredos e histórias - aquelas contadas e não contadas. 
Era tudo tão imprevisto, o caminho tão difícil, quase um sono sem sonhos. 
Tinha até um castelo, mas que não dava para brincar.
E o desejo era tanto, tanto, que houve um dia em que aconteceu que tudo se evaporou. 
E você sabe, né, vapor que sobe para o céu,  tem essa história de virar nuvem e também da nuvem virar chuva...
Mas o certo foi que ali, ao invés de virar vapor, nuvem, chuva,  tudo aquilo virou semente ...
Semente de estrela.
Que a gente plantou.
Vagarosamente...
E sem medo algum.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Enterrar nossos medos

Medo, medo, medo. Eita assunto que não cai de moda, principalmente em tempos de tantas asperezas da vida. Já faz algum tempo que alguém me pediu uma história que fizesse apaziguar o coração de outro alguém, que se corroía com seus medos. Hoje, encontrei a história, linda e cristalina para nosso conforto. Está em um livro de contos coletados por Rosane Pamplona, editado pela Brinque-Book, chamado Novas Histórias Antigas.


O homem que venceu o medo

  João Oleiro era um homem muito medroso. Morria de medo de doenças, de ladrões e até de fantasmas. Ele tinha muitas qualidades e gostava de trabalhar, fazendo com perfeição belos objetos de barro, mas paralisava-o o medo de não vender o que produzisse, o medo de ser roubado, o medo de ficar na miséria.
  
De tanto medo, quase não saía de casa e evitava amigos. Seus negócios, que já não íam muito bem, piores ficaram quando um outro oleiro instalou-se na cidade e roubou-lhe a pequena freguesia que lhe restava. João começou a fazer dívidas e aos poucos os fantasmas que temia passaram a tomar corpo na forma de credores que batiam à sua porta e o ameaçavam de prisão.
  Desesperado, não vendo saída para os seus problemas, João Oleiro resolveu matar-se... “Por que não?”, pensou ele. “A vida para mim não vale mais nada. Não tenho amigos, não tenho fregueses, não tenho dinheiro nem para comer. Está resolvido: vou me matar.”
 Assim que decidiu isso, João parou de se atormentar. Com a calma advinda do irremediável, ponderou que, já que aquele seria seu último ato, deveria fazê-lo bem feito. Como não fosse nada preguiçoso, resolveu primeiro fabricar um bom caixão para si mesmo. Lembrou-se de ter visto um velho barco abandonado na beira do rio e, à noite, tomando cuidado para não ser visto, foi buscá-lo.
  Em casa, cortou a madeira e passou o dia todo lixando, martelando, pintando. Já era tarde quando o caixão ficou pronto; muito bem acabado, parecia obra de um mestre. Satisfeito consigo mesmo, João resolveu comemorar. Esquecendo que já ninguém lhe vendia fiado, entrou na taberna e pediu, todo cheio de si, uma caneca de cerveja. O taberneiro, diante daquela pose confiante, não ousou recusar, porém ficou intrigado: um homem naquela situação miserável rindo à toa? “Ali tem coisa”, pensou. Um dos empregados da taberna lembrou-se de tê-lo visto em atitude suspeita lá na beira do rio. – Talvez tenha encontrado algum tesouro – arriscou ele ao patrão.
  João bebeu sua cerveja e voltou para casa. Muito contente, dormiu uma noite  cheia de sonhos agradáveis. Na manhã seguinte, acordou sentindo-se muito bem. Abriu as janelas de sua casa, deixou o sol entrar e decidiu que poderia conceder-se três dias de prazo antes de matar-se, pois queria aproveitar aquela sensação de bem-estar. E como o seu coração estivesse leve, pegou um pouco de barro e pôs-se a modelar tudo o que lhe vinha à imaginação, sem medo de censuras.
  Trabalhou com gosto e no fim do dia admirou com orgulho a sua produção: vasos e potes lindos, originais, verdadeiras obras-primas.
  Satisfeito, novamente João foi à cidade comemorar, mal cabendo em si de felicidade. Seus amigos, estranhando aquela atitude, resolveram, no dia seguinte, dar uma espiada em sua casa. E lá dentro viram João, que trabalhava assobiando, rodeado de belíssimas peças de barro. Um dos amigos resolveu entrar e oferecer um  bom dinheiro por um dos vasos. Outros logo o imitaram, e assim ele foi vendendo tudo o que produzia.
 No fim daqueles três dias, João resolveu se permitir mais um prazo. “Afinal”, pensou, “sou eu quem vai morrer, posso marcar o dia que quiser. Além disso, estou cheio de encomendas e não quero decepcionar os amigos. Mais uma semana seria bom”, determinou e continuou trabalhando feliz, criando arrojadas peças . Não demorou que seus objetos de barro ganhassem fama. O outro oleiro, seu concorrente, não conseguiu segurar a freguesia: todos só falavam nos inigualáveis vasos de João.
  De bem com a vida, é claro que João não pensou mais em morrer. Adiou indefinidamente aquela idéia e tratou de aproveitar sua sorte. Foi ficando rico, pagou suas dívidas, casou-se com uma boa moça e construiu para eles uma bela casa. No fundo da casa, num quartinho fechado a chave, guardou o caixão que fabricara naquele dia de desespero. A todos dizia que ali estava encerrado o segredo de sua prosperidade.
  Só muitos anos mais tarde, depois de uma longa vida  venturosa, morreu João Oleiro. Abrindo o quarto secreto, seus netos descobriram que o único segredo da felicidade daquele homem foi ter sabido um dia enterrar o seu medo.