quarta-feira, 20 de março de 2013

O Dom da História


Hoje comemoramos o Dia Internacional do Contador de Histórias. Alegria, alegria! Que nossas palavras continuem encantadas, que nossos corações continuem abertos e nossa alma continue plena. E que esse nosso ofício contribua cada vez mais para tornar o mundo mais leve e as pessoas mais felizes. Para comemorar, posto novamente essa história, generosamente oferecida pela encantadora Clarissa Pinkola Estes.

O Dom da História

O amado Bal Shem Tov estava à morte e mandou chamar seus discípulos.
- Sempre fui o intermediário de vocês e, agora, quando eu me for, vocês terão que fazer isso sozinhos. Vocês conhecem o lugar da floresta onde eu invoco a Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do mesmo modo. Vocês sabem acender a fogueira e sabem dizer a oração. Façam tudo e Deus virá.

Depois que Bal Shem Tov morreu, a primeira geração obedeceu exatamente as suas instruções. E Deus sempre veio.  Na segunda geração, porém, as pessoas já haviam se esquecido do jeito que se acendia a fogueira como Bal Shem Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas ficavam paradas no local especial da floresta, diziam a oração e... Deus vinha.

Na terceira geração, as pessoas já não se lembravam de como acender a fogueira, nem do local da floresta. Mas diziam a oração assim mesmo. E Deus vinha.

Na quarta geração, ninguém se lembrava de como se acendia a fogueira, ninguém sabia mais em que local exatamente da floresta deviam ficar e, finalmente, não conseguiam se recordar nem da própria oração. Mas uma pessoa ainda se lembrava da história sobre tudo aquilo. E essa pessoa relatou essa história em voz alta.
E Deus ainda veio...

sexta-feira, 8 de março de 2013

Todas as mulheres



Vive dentro de mim 
uma cabocla velha
 
de mau-olhado,
 
acocorada ao pé do borralho,
 
olhando pra o fogo.
 
Benze quebranto.
 
Bota feitiço...
 
Ogum. Orixá.
 
Macumba, terreiro.
 
Ogã, pai-de-santo...
 
Vive dentro de mim
 
a lavadeira do Rio Vermelho,
 
Seu cheiro gostoso
 
d’água e sabão.
 
Rodilha de pano.
 
Trouxa de roupa,
 
pedra de anil.
 
Sua coroa verde de são-caetano.
 
Vive dentro de mim
 
a mulher cozinheira.
 
Pimenta e cebola.
 
Quitute bem feito.
 
Panela de barro.
 
Taipa de lenha.
 
Cozinha antiga
 
toda pretinha.
 
Bem cacheada de picumã.
 
Pedra pontuda.
 
Cumbuco de coco.
 
Pisando alho-sal.
 
Vive dentro de mim
 
a mulher do povo.
 
Bem proletária.
 
Bem linguaruda,
 
desabusada, sem preconceitos,
 
de casca-grossa,
 
de chinelinha,
 
e filharada.
 
Vive dentro de mim
 
a mulher roceira.
 
– Enxerto da terra,
 
meio casmurra.
 
Trabalhadeira.
 
Madrugadeira.
 
Analfabeta.
 
De pé no chão.
 
Bem parideira.
 
Bem criadeira.
 
Seus doze filhos.
 
Seus vinte netos.
 
Vive dentro de mim
 
a mulher da vida.
 
Minha irmãzinha...
 
tão desprezada,
 
tão murmurada...
 
Fingindo alegre seu triste fado.
 
Todas as vidas dentro de mim:
 
Na minha vida –
 
a vida mera das obscuras.