quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Para compor nossos silêncios

Manoel de Barros me lembrava Fernando Rodrigues. Ambos tinham uma vocação para o inventar. E também o desinventar. Fernando Rodrigues me deu um livro de Manoel de Barros chamado Memórias inventadas. Um livro de capa marrom e páginas cor de creme, - as cores se mopstravam nas pequenas iluminuras, de Martha Barros, recheando cada texto.  Anos depois, a Mariana Rodrigues me deu o mesmo livro, mas esse vinha mais colorido, capa dura, azul celeste. As iluminuras tomando toda a página, como se fosse o livro para crianças.  Mas eu já sabia que  Manoel de Barros não era para este ou aquele público... mas sim para a alma de todos nós.
Hoje, o poeta foi partiu. Foi, com certeza, brincar com palavras e desinventar memórias em um céu mais sereno. Quem puder ouvi-lo a partir de agora, ganha o que perdemos com pesar nesta manhã.  Por isso, coloco aqui um texto que gosto muito. Tanto quanto o poema O apanhador de desperdícios. Este - O menino que ganhou um rio -  me traz a generosidade do menino inventador de coisas. Puro encantamento.

O menino que ganhou um rio
Minha mãe me deu um rio.
Era dia de meu aniversário e ela não sabia o que me presentear.
Fazia tempo que os mascates não passavam naquele lugar esquecido.
Se o mascate passasse a minha mãe compraria rapadura ou bolachinhas para me dar.
Mas como não passara o mascate, minha mãe me deu um rio.
Era o mesmo rio que passava atrás da casa.
Eu estimei o presente mais do que fosse uma rapadura do mascate.
Meu irmão ficou magoado porque ele gostava do rio igual aos outros.
A mãe prometeu que no aniversário do meu irmão ela iria dar uma árvore para ele.
Uma que fosse coberta de pássaros.
Eu bem ouvi a promessa que a mãe fizera ao meu irmão.  E achei legal.
Os pássaros ficavam durante o dia nas margens do meu rio
E de noite iriam dormir na árvore do meu irmão.
Meu irmão me provocava assim: minha árvore deu flores lindas em setembro. E o seu rio não dá flores! E eu respondia que a árvore dele não dava piraputanga.
Era verdade, mas o que nos unia demais eram os banhos nus no rio entre pássaros.

Nesse ponto nossa vida era um afago!

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Um novo ano - novas escolhas

Um novo período se inicia em minha vida e, por isso, busquei uma história. Encontrei esta, que já postei algumas vezes e decidi que seria ela novamente, pois me toca profundamente. A reflexão é sobre o desafio diário das escolhas que, muitas vezes, pesa demais, tornando nossos passos infinitamente difíceis. Por isso adoro este conto de Marina Colasanti, chamada "As Notícias e o Mel". Que maravilhosa escolha a desse rei...

As notícias e o Mel

Um dia o rei ficou surdo. Não como uma porta, mas como uma janela de dois batentes.  Ouvia tudo do lado esquerdo. Do lado direito, não ouvia nada. A situação era incômoda, Só atendia aos ministros que sentavam de um lado do trono. Aos outros, nem respondia. E até mesmo de manhã, se o galo cantasse do lado errado, Sua Majestade não acordava e passava o dia inteiro dormindo.
Foi quando mandou chamar o gnomo da floresta. E o gnomo, obediente, apareceu na corte. Veio voando, com suas asinhas. Tão pequeno que, embora todos avisados de sua chegada, quase o confundiram com um inseto qualquer.
Chegou e logo se entendeu com o rei, estabelecendo um trato.  Ficaria morando no ouvido direito e repetiria para dentro – e bem alto – tudo o que ouvisse lá de fora. Tendo asas, e desejando, poderia aproveitar seu parentesco com as abelhas para fabricar no ouvido real alguma cera e um pouco de mel. O trato funcionou às mil maravilhas. Tudo o que o gnomo ouvia, repetia em voz bem alta nas cavernas da orelha, e o eco e a voz do gnomo chegavam até o rei, que passou a entender como antigamente, de lado a lado.
Correu o tempo. Rei e gnomo, assim tão vizinhos, foram ficando cada dia mais íntimos. Um já sabia tudo do outro e era com prazer que o gnomo gritava e era com prazer que o rei ouvia o zumbidinho das asas atarefadas no fabrico da cera e do mel. Uma certa doçura começou a espalhar-se do ouvido real para a cabeça e o rei foi ficando, aos poucos, mais bondoso.
Foi essa a causa da primeira mentira.
O Primeiro Ministro deu uma má notícia no ouvido esquerdo e o gnomo, não querendo entristecer o rei, transmitiu uma boa notícia no ouvido direito.
Foi essa a primeira vez que o rei ouviu duas notícias ao mesmo tempo. Foi essa a primeira vez que o rei escolheu a notícia melhor ...
Houve outras depois.
Sempre que alguma coisa ruim era dita ao rei, o gnomo a transformava em alguma coisa boa. E sempre que o rei ouvia duas notícias, escolhia a melhor delas.
Aos poucos, o rei foi deixando de prestar atenção naquilo que lhe chegava do lado esquerdo, E até mesmo de manhã, se o galo cantasse desse lado e o gnomo não repetisse o canto do galo, Sua Majestade esquecia-se de ouvir e continuava dormindo tranqüilo até ser despertado pelo chamado do amigo.
De um lado o mel escorria. Do outro, chegavam as preocupações, as tristezas, e todos os ventos maus pareciam soprar à esquerda de sua cabeça.
Mas o rei tinha provado o mel e a doçura era agora mais importante do que qualquer notícia. Entregou o trono e a coroa para o Primeiro Ministro. Depois chamou o gnomo para junto da boca e murmurou-lhe baixinho a ordem.
Obediente, o gnomo voou para o lado esquerdo e, aproveitando seu parentesco com as abelhas, fabricou algum mel e abundante cera, com a qual tapou para sempre o ouvido do rei.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Ter vontade e correr atrás

Ter coragem para correr atrás de seus sonhos.  Entender suas vontades e perceber o quanto elas importam para sua vida, sua alma.  Sentir uma coceira, que pode ser o que falta para transformar a sua vida (e coçar gostoso até doer). Eita coisa difícil... Já tive um monte de vontades, algumas delas eu respeitei, corri atrás. Não foi fácil, mas foi tão bom ...  E já tive um monte de exemplos também.  Dentro de casa mesmo, me deparei com filhas que deixaram o conforto e o aconchego da família para buscar seus sonhos, suas aventuras, seus ideais e até suas dúvidas em lugares bem distantes.  E também foi bom, até onde eu sei.  Sendo assim, sinto-me muito feliz em postar a história de hoje, de Jonas Ribeiro, lindamente ilustrada por Laura Michell e publicada pela Editora Callis. Acredito que ela seja uma homenagem para quem já sentiu vontade e foi atrás. Serve também para cutucar quem está morrendo de desejo, mas  prefere ficar sentado, esperando essa coceira/vontade passar.

O esconderijo das vontades

Era uma vez uma cidade onde moravam muitas vontades. Elas nasciam em um lugar escuro e silencioso e viviam por meses, anos, dentro das pessoas. Mas nem sempre as pessoas se davam conta de que havia uma vontade vivendo em algum canto de seu coração ou em alguma gaveta de seu pensamento. Quando a vontade percebia que não seria mesmo descoberta, ela deixava o esconderijo e voava para outro lugar do Universo. Ou, então, escolhia outra pessoa para nela se esconder. E, de preferência, uma pessoa que não estivesse tão ocupada assim e gostasse de olhar para dentro de si. 

Ah, e como as vontades eram sonhadoras! Sonhavam com a luz, com uma vida ruidosa. Queriam ser descobertas e crescer, crescer, só para conseguir saltar de seus esconderijos.

Nessa cidade, o padeiro sentia vontade de fazer pães mais macios e apetitosos. 
A costureira sentia vontade de estudar moda em Paris. 
O piloto de avião sentia vontade de ser astronauta. 
A telefonista sentia vontade de ser locutora de rádio. 
O pianista sentia vontade de tocar com uma orquestra. 
A bióloga sentia vontade de morar na Amazônia.

Os moradores da cidade gostavam de suas profissões, mas sentiam vontade de fazer algo mais. Não havia graça em só fazer o que sabiam. Eles queriam mais, muito mais. 
E, todos os dias, o Sol se levantava e animava as vontades a sair de seus esconderijos. 
E, todas as noites, a Lua se levantava e convidava as vontades a sair de seus esconderijos. 
Acontece que, mesmo escondidas lá dentro, as vontades ouviam chamar seus nomes. 
Elas queriam sair para brincar e descobrir o mundo. 

Conforme o tempo foi passando, as pessoas mais corajosas embalavam suas vontades e lhes contava que o mundo era um lugar bom. 
Conversavam um pouquinho por dia com elas. 
As pessoas corajosas davam tanta atenção para as suas vontades, que elas cresciam fortes e barulhentas.

Acontecia o que devia mesmo acontecer. As vontades já não cabiam nos esconderijos. Nada mais poderia contê-las. 
Era chegado o momento. 
As vontades fechavam os olhos, contavam até três e saltavam...

E, assim, o padeiro fazia pães mais macios e apetitosos.
A costureira virava modista.
O piloto de avião virava astronauta.
A telefonista virava locutora de rádio.
O pianista tocava em uma orquestra.
A bióloga morava na Amazônia.


Sim, era uma cidade onde as vontades adoravam crescer dentro das pessoas corajosas. 

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Poder contar com um pai

Conto várias histórias no Dia dos Pais. Há uma, porém, que me toca muito, muito profundamente. Lembro-me da primeira vez que a ouvi, não podia ser melhor nem mais bela: foi contada por Giba Pedrosa, meu mestre contador de histórias. Quem conhece o Giba sabe da potência da sua voz. Sabe também da magia e da emoção que ele traz para uma história. Ele a contou pausadamente, bem baixinho, sem colocar nem uma palavra a mais ou a menos. Ao final, um silêncio. Ouvi-la causou tamanho impacto que foi como uma bomba no meu coração, uma bomba forte de coisas boas... Assim, essa ficou sendo a minha história preferida sobre pai. Saí buscando este texto. Giba havia dito que era de Eduardo Galeano. Fui encontrá-la em O livro dos abraços, no qual Galeano traz delicado tecido de suas memórias, onde seus pequenos, porém infinitos momentos vão como que nos abraçando. Esse conto vem com o sugestivo título de 

"A função da Arte/1"

Diego não conhecia o mar. 
O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. 
Viajaram para o Sul. 
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos.
E foi tanta a imensidão do mar, e tanto  o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E, quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Pai, me ajuda a olhar!

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Qualquer coisa não!

Considero que respeitar o poder de escolha de cada um é uma das medidas mais certeiras para se tentar ser feliz. Principalmente se você souber escolher. Nada de se contentar com as coisas como estão, se conformar, etc e tal. Isso é um perigo. E como eu ainda respeito o meu poder de escolha e de indignação com as coisas que nos agridem, pensei em contar a história abaixo. É de Adriana Falcão, extraída do livro  "Sete histórias para contar".

Qualquer coisa serve 

Biscoito? A menina gostava.
Boneca? Gostava.
Dia de chuva? Gostava também.
Barata? Também gostava.
A menina gostava de qualquer coisa boa e de qualquer coisa ruim. Ela nem pensava. Ia logo gostando de qualquer brincadeira, de qualquer besteira, qualquer programa de televisão, de qualquer música, qualquer nota, qualquer lugar, qualquer um.
Nada precisava ser bom para agradar a menina. 
Tudo estava bom do jeito que estava.
E tudo que estava em volta dela foi ficando com uma preguiça de ficar melhor. E foi ficando de qualquer jeito.  Cada besteira, cada brincadeira, cada programa de televisão. Cada música, cada nota, cada um, cada lugar. 
Até que um dia, a menina ouviu alguém falar assim "Essa menina gosta de cada coisa..." 
E ela não gostou nem um pouco disso. 
Finalmente, existia uma coisa no mundo de que a menina não gostava.  
E passou a separar as coisas boas das coisas ruins. 
Mas o melhor é que, a partir de então, cada brincadeira, cada besteira, cada programa de televisão, cada música, cada nota, cada lugar, cada pessoa, cada coisa, tinha que ser melhor para agradar a menina. 
E, devagarzinho, aos pouquinhos, pedacinho por pedacinho, o mundo foi ficando melhor, junto com cada coisa.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Dia de oferecer histórias

Lembrei dessa história hoje. Eu já havia postado, mas acho que sempre vale a pena lê-la. Ela é um grande alento para nós, contadores de histórias. Que nossas palavras continuem encantadas, que nossos corações continuem abertos e nossa alma continue plena. E que esse nosso ofício contribua cada vez mais para tornar o mundo mais leve e as pessoas mais felizes. Por isso, publico novamente essa história, generosamente oferecida pela encantadora Clarissa Pinkola Estes.

O Dom da História

O amado Bal Shem Tov estava à morte e mandou chamar seus discípulos.
- Sempre fui o intermediário de vocês e, agora, quando eu me for, vocês terão que fazer isso sozinhos. Vocês conhecem o lugar da floresta onde eu invoco a Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do mesmo modo. Vocês sabem acender a fogueira e sabem dizer a oração. Façam tudo e Deus virá.
Depois que Bal Shem Tov morreu, a primeira geração obedeceu exatamente as suas instruções. E Deus sempre veio.  Na segunda geração, porém, as pessoas já haviam se esquecido do jeito que se acendia a fogueira como Bal Shem Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas ficavam paradas no local especial da floresta, diziam a oração e... Deus vinha.
Na terceira geração, as pessoas já não se lembravam de como acender a fogueira, nem do local da floresta. Mas diziam a oração assim mesmo. E Deus vinha.
Na quarta geração, ninguém se lembrava de como se acendia a fogueira, ninguém sabia mais em que local exatamente da floresta deviam ficar e, finalmente, não conseguiam se recordar nem da própria oração. 
Mas uma pessoa ainda se lembrava da história sobre tudo aquilo. E essa pessoa relatou essa história em voz alta.
E Deus ainda veio...

sábado, 21 de junho de 2014

Dia de contar histórias

Hoje, 21 de junho, é dia de contar histórias para mudar o mundo. A data foi instituída pela Rede Internacional de Cuentacontos, em 2009. Conto histórias todos os dias, mas nesta data especial, lembrei-me novamente da minha avó Santinha (o nome dela era esse mesmo, como se fosse uma pequena santa por toda a sua vida). Minha avó Santinha era uma mulher forte, dessas que traz sua mulher selvagem dentro de si sem pestanejar. Poderosa, criou 10 filhos, lavando roupa para fora, costurando, amando meu avô e ensinando seus filhos a serem pessoas boas. E também gostava de ler (foi alfabetizada pelo meu avô depois do casamento e com filhos no colo). Lia e contava histórias.  Tenho certeza de que ela gostaria da história abaixo, uma história terna, meiga e de um profundo respeito aos nossos velhos, de autoria de Mem Fox.

GUILHERME AUGUSTO ARAÚJO FERNANDES

Era uma vez um menino chamado Guilherme Augusto Araújo Fernandes e ele nem era tão velho assim.
Sua casa era ao lado de um asilo de velhos e ele conhecia todo mundo que vivia lá.
Ele gostava da senhora Silvano, que tocava piano.
Ele ouvia as histórias arrepiantes, que lhe contava o Sr. Cervantes.
Ele brincava com o Sr. Valdemar, que adorava remar.
Ajudava a senhora Mandala, que andava com uma bengala.
E admirava o Sr. Possante, que tinha voz de gigante.
Mas a pessoa que ele mais gostava era a senhora Antônia Maria Diniz Cordeiro, porque ela também tinha quatro nomes, como ele. Ele a chamava de Dona Antônia e contava-lhe todos os seus segredos.
Um dia, Guilherme Augusto escutou sua mãe e seu pai conversando sobre Dona Antônia.
- Coitada da velhinha - disse sua mãe.
- Por que ela é coitada? - perguntou Guilherme Augusto.
- Porque ela perdeu a memória - respondeu seu pai.
- Também, não é para menos – disse a mãe. - ela já tem noventa e seis anos.
- O que é memória? - perguntou Guilherme Augusto.
Ele vivia fazendo perguntas.
- É algo de que você se lembre - respondeu o pai.
Mas Guilherme Augusto queria saber mais; então, ele procurou a Sra. Silvano que tocava piano.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo quente, meu filho, algo quente.
Ele procurou o Sr. Cervantes, que lhe contava histórias arrepiantes.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo bem antigo, meu caro, algo bem antigo.
Ele procurou o Sr. Valdemar, que adorava remar.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo que o faz chorar, meu menino, algo que o faz chorar.
Ele procurou a senhora Mandala, que andava com uma bengala.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo que o faz rir, meu querido, algo que o faz rir.
Ele procurou o Sr. Possante, que tinha voz de gigante.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo que vale ouro, meu jovem, algo que vale ouro.
Então Guilherme Augusto voltou para casa, para procurar memórias para Dona Antônia, já que ela havia perdido as suas.
Ele procurou uma antiga caixa de sapatos cheia de conchas, guardadas há muito tempo, e colocou-as com cuidado numa cesta.
Ele achou a marionete, que sempre fizera todo mundo rir, e colocou-a na cesta também.
Ele lembrou-se, com tristeza, da medalha que seu avô lhe tinha dado e colocou-a delicadamente ao lado das conchas.
Depois achou sua bola de futebol, que para ele valia ouro; por fim, entrou no galinheiro e pegou um ovo fresquinho, ainda quente, debaixo da galinha.
Aí, Guilherme Augusto foi visitar Dona Antônia e deu a ela, uma por uma, cada coisa de sua cesta.
"Que criança adorável que me traz essas coisas maravilhosas", pensou Dona Antônia.
E então ela começou a se lembrar.
Ela segurou o ovo ainda quente e contou a Guilherme Augusto sobre um ovinho azul, todo pintado, que havia encontrado uma vez, dentro de um ninho, no jardim da casa de sua tia.
Ela encostou uma das conchas em seu ouvido e lembrou da vez que tinha ido à praia de bonde, há muito tempo, e como sentira calor com suas botas de amarrar.
Ela pegou a medalha e lembrou, com tristeza, de seu irmão mais velho, que havia ido para guerra e que nunca voltou.
Ela sorriu para a marionete e lembrou da vez em que mostrara uma para sua irmãzinha, que rira às gargalhadas, com a boca cheia de mingau.
Ela jogou a bola de futebol para Guilherme Augusto e lembrou do dia em que se conheceram e de todos os segredos que haviam compartilhado.
E os dois sorriram e sorriram, pois toda a memória perdida de Dona Antônia tinha sido encontrada, por um menino que nem era tão velho assim.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A águia e a galinha

Esta é uma história que me toca profundamente, quando se fala em correr atrás de nossos sonhos. Ela vem de um pequeno país da África Ocidental, Gana, narrada por um educador popular, James Aggrey, no século passado. Em meados de 1925, James havia participado de uma reunião de lideranças populares na qual se discutiam os caminhos da libertação do domínio colonial inglês. As opiniões se dividiam. Alguns queriam o caminho armado. Outros, o caminho da organização política do povo, caminho que efetivamente triunfou sob a liderança de Kwame N´Krumah. Outros se conformavam com a colonização à qual toda a África estava submetida. E havia também aqueles que se deixavam seduzir pela retórica dos ingleses. Eram favoráveis à presença inglesa como forma de modernização e de inserção no grande mundo tido como civilizado e moderno. O educador James Aggrey acompanhava atentamente cada intervenção. Num dado momento, porém, viu que líderes importantes apoiavam a causa inglesa e renunciavam aos sonhos de libertação. Ergueu então a mão e pediu a palavra. Com grande calma, própria de um sábio, e com certa solenidade, contou a seguinte história:
A águia e a galinha 
Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro, a fim de mantê-lo cativo em casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto às galinhas. Cresceu como uma galinha. 
Depois de cinco anos, esse homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturalista: 
- Esse pássaro aí não é uma galinha. É uma águia. 
- De fato, disse o homem.- É uma águia. Mas eu a criei como galinha. Ela não é mais águia. É uma galinha como as outras. 
- Não, retrucou o naturalista.- Ela é e será sempre uma águia. Este coração a fará um dia voar às alturas. 
- Não, insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia. 
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e, desafiando-a, disse: 
- Já que você de fato é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe! 
A águia ficou sentada sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá embaixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas. 
 O camponês comentou: 
- Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha! 
- Não, tornou a insistir o naturalista. - Ela é uma águia. E uma águia sempre será uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã. 
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. 
Sussurrou-lhe: 
- Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe! 
Mas, quando a águia viu lá embaixo as galinhas ciscando o chão, pulou e foi parar junto delas. 
O camponês sorriu e voltou a carga: 
- Eu havia lhe dito, ela virou galinha! 
- Não, respondeu firmemente o naturalista. - Ela é águia e possui sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar. 
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a  águia, levaram-na para o alto de uma montanha. O sol estava nascendo e 
dourava os picos das montanhas. 
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe: 
- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe! 
A águia olhou ao redor. Tremia, como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então, o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, de sorte que seus olhos pudessem se encher de claridade e ganhar as dimensões do vasto horizonte. 
Foi quando ela abriu suas potentes asas. Ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto e voar cada vez mais para o alto. Voou, voou, até confundir-se com o azul do firmamento. E nunca mais retornou.

Existem pessoas que nos fazem pensar como galinhas. E ainda até pensamos que somos efetivamente galinhas. Porém é preciso ser águia. Abrir as asas e voar. Voar como as águias. E jamais se contentar com os grãos que jogam aos pés para ciscar”.  Extraído de artigo publicado pela Folha de São Paulo, por Leonardo Boff, teólogo, escritor e professor de ética da UERJ

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Histórias, memórias e amor

Este curta brasileiro intitulado Dona Cristina Perdeu a Memória, de Ana Luiza Azevedo, traz a história do menino Antônio, que descobre que sua vizinha Cristina conta histórias diferentes sobre provavelmente os mesmos fatos de sua vida. Eles passam a se encontrar todos os dias e nesses encontros surge o respeito e cresce a cumplicidade entre eles. Impossível não se lembrar do igualmente lindo livro Guilherme Augusto Araújo Fernandes, só que aqui meio ao contrário.  O que é encantador também. Emocionante, singelo e extremamente sacado e inteligente, um filme de sorrir e de chorar.. 





quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Um conto

Não se desafia a alma feminina. Ela sempre falará mais forte. Traz a força da Deusa e de sua ancestralidade, seja lá como for. Em algum momento, a mulher selvagem dará um jeito de reaparecer, reaprender, resurgir, resignificar. É no que acredito. E é o que vejo quando leio este lindo conto de Marina Colasanti, publicado no livro Uma ideia toda azul.

Por entre as folhas do verde
Era dia de caçada. O príncipe acordou contente. Era dia de caçada. Os cachorros latiam no pátio do castelo. Vestiu o colete de couro, calçou as botas. Os cavalos batiam os cascos debaixo da janela. Apanhou as luvas e desceu.
Lá embaixo parecia uma festa. Os arreios e os pelos dos
animais brilhavam ao sol. Brilhavam os dentes abertos em
risadas, as armas, as trompas que deram o sinal de partida.
Na floresta também ouviram a trompa e o alarido. Todos souberam que eles vinham. E cada um se escondeu como pôde.
Só a moça não se escondeu. Acordou com o som da tropa, e estava debruçada no regato quando os caçadores chegaram.
Foi assim que o príncipe a viu. Metade mulher, metade corça, bebendo no regato. A mulher tão bonita. A corça tão ágil. A mulher ele queria amar, a corça ele queria matar. Se chegasse perto será que ela fugia? Mexeu num galho, ela levantou a cabeça ouvindo. Então o príncipe botou a flecha no arco, retesou a corda, atirou bem na pata direita. E quando a corça-mulher dobrou os joelhos tentando arrancar a flecha, ele correu e a segurou, chamando homens e cães.
Levaram a corça para o castelo. Veio o médico, trataram do ferimento. Puseram a corça num quarto de porta trancada.
Todos os dias o príncipe ia visitá-la. Só ele tinha a chave. E cada vez se apaixonava mais. Mas a corça-mulher só falava a língua da floresta e o príncipe só sabia ouvir a língua do palácio.
Então ficaram horas se olhando calados, com tanta coisa para dizer.
Ele queria dizer que a amava tanto, que queria casar com ela e tê-la para sempre no castelo, que a cobriria de roupas e jóias, que chamaria o melhor feiticeiro do reino para fazê-la virar toda mulher.
Ela queria dizer que o amava tanto, que queria casar com ele e levá-lo para a floresta, que lhe ensinaria a gostar dos pássaros e das flores e que pediria à Rainha das Corças para dar-lhe quatro patas ágeis e um belo pelo castanho.
Mas o príncipe tinha a chave da porta. E ela não tinha o segredo da palavra.
Todos os dias se encontravam. Agora se seguravam as mãos. E no dia em que a primeira lágrima rolou dos olhos dela, o príncipe pensou ter entendido e mandou chamar o feiticeiro.
Quando a corça acordou, já não era mais corça. Duas pernas só e compridas, um corpo branco. Tentou levantar, não conseguiu. O príncipe lhe deu a mão. Vieram as costureiras e a cobriram de roupas. Vieram os joalheiros e a cobriram de jóias. Vieram os mestres de dança para ensinar-lhe a andar. Só não tinha a palavra. E o desejo de ser mulher.
Sete dias ela levou para aprender sete passos. E na manhã do oitavo, quando acordou e viu a porta aberta, juntou sete passos e mais sete, atravessou o corredor, desceu a escada, cruzou o pátio e correu para a floresta à procura de sua Rainha.
O sol ainda brilhava quando a corça saiu da floresta, só corça, não mais mulher. E se pôs a pastar sob as janelas do palácio.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A chuva hoje

Estou trabalhando com o tema chuva há algum tempo. Os pingos vêm e vão, num brincar constante da magia que essa manifestação da natureza nos dá. E aí, hoje, somos todos presenteados com esse belo poema de meu amigo, grande escritor, poeta e educador, Celso Sisto. Pedi para ele, e Celso carinhosamente me permitiu a sua publicação aqui no blog. Deleitem-se.

























Hoje
A chuva está repleta 
de milagres
faz brotar a cor
no jardim do menino
alimenta o riachinho
dos olhos 
na hora alegre
e na hora incerta
e liberta as libélulas
que céleres 
logo 
esvoaçam 
para salpicar 
de asas
os banhos
coletivos.
A melhor brincadeira
tem estado líquido 
e todo menino
tem sempre
um pacto com
a transparência 
das águas.

Celso Sisto 
13 de janeiro de 2014
Ilustração de Vickie Wade

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Viver sem medo

A construção se dá a cada dia. Mas o início de ano sempre nos traz aquela percepção de que é hora de pensar em coisas novas: novos projetos, novas ideias, novas atitudes. Para mim, o melhor é a possibilidade de novos planos. E fazer planos sem medo, sem medo de ousar, sem medo de errar, de dar o primeiro passo, de ir ou de ficar. Jogar o medo fora, não deixá-lo bater à sua porta. Esse é o segredo. Por isso, busquei essa linda história, coletada por Rosane Pamplona e publicada no livro Novas Histórias Antigas, da Editora Brinque-Book.

O homem que venceu o medo
João Oleiro era um homem muito medroso. Morria de medo de doenças, de ladrões e até de fantasmas. Ele tinha muitas qualidades e gostava de trabalhar, fazendo com perfeição belos objetos de barro, mas paralisava-o o medo de não vender o que produzisse, o medo de ser roubado, o medo de ficar na miséria.
De tanto medo, quase não saía de casa e evitava amigos. Seus negócios, que já não iam muito bem, piores ficaram quando um outro oleiro instalou-se na cidade e roubou-lhe a pequena freguesia que lhe restava. João começou a fazer dívidas e aos poucos os fantasmas que temia passaram a tomar corpo na forma de credores que batiam à sua porta e o ameaçavam de prisão.
Desesperado, não vendo saída para os seus problemas, João Oleiro resolveu matar-se... “Por que não?”, pensou ele. “A vida para mim não vale mais nada. Não tenho amigos, não tenho fregueses, não tenho dinheiro nem para comer. Está resolvido: vou me matar.”
Assim que decidiu isso, João parou de se atormentar. Com a calma advinda do irremediável, ponderou que, já que aquele seria seu último ato, deveria fazê-lo bem feito. Como não fosse nada preguiçoso, resolveu primeiro fabricar um bom caixão para si mesmo. Lembrou-se de ter visto um velho barco abandonado na beira do rio e, à noite, tomando cuidado para não ser visto, foi buscá-lo. Em casa, cortou a madeira e passou o dia todo lixando, martelando, pintando. Já era tarde quando o caixão ficou pronto; muito bem acabado, parecia obra de um mestre.
Satisfeito consigo mesmo, João resolveu comemorar. Esquecendo que já ninguém lhe vendia fiado, entrou na taberna e pediu, todo cheio de si, uma caneca de cerveja. O taberneiro, diante daquela pose confiante, não ousou recusar, porém ficou intrigado: um homem naquela situação miserável rindo à toa? “Ali tem coisa”, pensou. Um dos empregados da taberna lembrou-se de tê-lo visto em atitude suspeita lá na beira do rio. – Talvez tenha encontrado algum tesouro – arriscou ele ao patrão.
João bebeu sua cerveja e voltou para casa. Muito contente, dormiu uma noite  cheia de sonhos agradáveis. Na manhã seguinte, acordou sentindo-se muito bem. Abriu as janelas de sua casa, deixou o sol entrar e decidiu que poderia conceder-se três dias de prazo antes de matar-se, pois queria aproveitar aquela sensação de bem-estar. E como o seu coração estivesse leve, pegou um pouco de barro e pôs-se a modelar tudo o que lhe vinha à imaginação, sem medo de censuras.
Trabalhou com gosto e no fim do dia admirou com orgulho a sua produção: vasos e potes lindos, originais, verdadeiras obras-primas.
Satisfeito, novamente João foi à cidade comemorar, mal cabendo em si de felicidade. Seus amigos, estranhando aquela atitude, resolveram, no dia seguinte, dar uma espiada em sua casa. E lá dentro viram João, que trabalhava assobiando, rodeado de belíssimas peças de barro. Um dos amigos resolveu entrar e oferecer um bom dinheiro por um dos vasos. Outros logo o imitaram, e assim ele foi vendendo tudo o que produzia. 
 No fim daqueles três dias, João resolveu se permitir mais um prazo. “Afinal”, pensou, “sou eu quem vai morrer, posso marcar o dia que quiser. Além disso, estou cheio de encomendas e não quero decepcionar os amigos. Mais uma semana seria bom”, determinou e continuou trabalhando feliz, criando arrojadas peças . Não demorou que seus objetos de barro ganhassem fama. O outro oleiro, seu concorrente, não conseguiu segurar a freguesia: todos só falavam nos inigualáveis vasos de João.
 De bem com a vida, é claro que João não pensou mais em morrer. Adiou indefinidamente aquela ideia e tratou de aproveitar sua sorte. Foi ficando rico, pagou suas dívidas, casou-se com uma boa moça e construiu para eles uma bela casa. No fundo da casa, num quartinho fechado a chave, guardou o caixão que fabricara naquele dia de desespero. A todos dizia que ali estava encerrado o segredo de sua prosperidade.
 Só muitos anos mais tarde, depois de uma longa vida venturosa, morreu João Oleiro. Abrindo o quarto secreto, seus netos descobriram que o único segredo da felicidade daquele homem foi ter sabido um dia enterrar o seu medo.