quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Para compor nossos silêncios

Manoel de Barros me lembrava Fernando Rodrigues. Ambos tinham uma vocação para o inventar. E também o desinventar. Fernando Rodrigues me deu um livro de Manoel de Barros chamado Memórias inventadas. Um livro de capa marrom e páginas cor de creme, - as cores se mopstravam nas pequenas iluminuras, de Martha Barros, recheando cada texto.  Anos depois, a Mariana Rodrigues me deu o mesmo livro, mas esse vinha mais colorido, capa dura, azul celeste. As iluminuras tomando toda a página, como se fosse o livro para crianças.  Mas eu já sabia que  Manoel de Barros não era para este ou aquele público... mas sim para a alma de todos nós.
Hoje, o poeta foi partiu. Foi, com certeza, brincar com palavras e desinventar memórias em um céu mais sereno. Quem puder ouvi-lo a partir de agora, ganha o que perdemos com pesar nesta manhã.  Por isso, coloco aqui um texto que gosto muito. Tanto quanto o poema O apanhador de desperdícios. Este - O menino que ganhou um rio -  me traz a generosidade do menino inventador de coisas. Puro encantamento.

O menino que ganhou um rio
Minha mãe me deu um rio.
Era dia de meu aniversário e ela não sabia o que me presentear.
Fazia tempo que os mascates não passavam naquele lugar esquecido.
Se o mascate passasse a minha mãe compraria rapadura ou bolachinhas para me dar.
Mas como não passara o mascate, minha mãe me deu um rio.
Era o mesmo rio que passava atrás da casa.
Eu estimei o presente mais do que fosse uma rapadura do mascate.
Meu irmão ficou magoado porque ele gostava do rio igual aos outros.
A mãe prometeu que no aniversário do meu irmão ela iria dar uma árvore para ele.
Uma que fosse coberta de pássaros.
Eu bem ouvi a promessa que a mãe fizera ao meu irmão.  E achei legal.
Os pássaros ficavam durante o dia nas margens do meu rio
E de noite iriam dormir na árvore do meu irmão.
Meu irmão me provocava assim: minha árvore deu flores lindas em setembro. E o seu rio não dá flores! E eu respondia que a árvore dele não dava piraputanga.
Era verdade, mas o que nos unia demais eram os banhos nus no rio entre pássaros.

Nesse ponto nossa vida era um afago!