sexta-feira, 20 de março de 2015

Dia Internacional do Contador de Histórias

Hoje comemoramos o Dia Internacional do Contador de Histórias. Alegria, alegria! Que nossas palavras continuem encantadas, que nossos corações continuem abertos e que nossa alma continue plena para que esse nosso ofício contribua para que o mundo seja mais leve e as pessoas mais felizes. Para comemorar, posto essa história, generosamente oferecida pela encantadora Clarissa Pinkola Estes.

O Dom da História

O amado Bal Shem Tov estava à morte e mandou chamar seus discípulos.
- Sempre fui o intermediário de vocês e, agora, quando eu me for, vocês terão que fazer isso sozinhos. Vocês conhecem o lugar da floresta onde eu invoco a Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do mesmo modo. Vocês sabem acender a fogueira e sabem dizer a oração. Façam tudo e Deus virá.

Depois que Bal Shem Tov morreu, a primeira geração obedeceu exatamente as suas instruções. E Deus sempre veio.  Na segunda geração, porém, as pessoas já haviam se esquecido do jeito que se acendia a fogueira como Bal Shem Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas ficavam paradas no local especial da floresta, diziam a oração e... Deus vinha.

Na terceira geração, as pessoas já não se lembravam de como acender a fogueira, nem do local da floresta. Mas diziam a oração assim mesmo. E Deus vinha.
Na quarta geração, ninguém se lembrava de como se acendia a fogueira, ninguém sabia mais em que local exatamente da floresta deviam ficar e, finalmente, não conseguiam se recordar nem da própria oração. Mas uma pessoa ainda se lembrava da história sobre tudo aquilo. E essa pessoa relatou essa história em voz alta.

E Deus ainda veio...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

A alma que fala

Tenho pensado muito na minha essência. A cada encontro com nossa matilha descubro e reflito sobre algo tão interno quanto intenso. Tem sido um movimento tão forte dentro de mim, que busquei uma história sobre a essência de cada um de nós para publicar no blog. E, claro, Marina Colasanti novamente me surgiu, com uma das mais belas metáforas que já li.  Chama-se “Entre as folhas do verde O”, nome que aparece em uma canção popular da Idade Média, com a qual Marina abre esta história em seu livro Uma Ideia Toda Azul e que muito provavelmente a inspirou. História de amor, história sobre a transformação necessária para o amor? História sobre a dominação de alguém que pensa que ama ou ainda sobre a verdade daquilo que você escolheu para ser, para sentir? Será de tudo um pouco?  O fato é que a essência é o que fala mais alto, são as palavras de nossa alma. Bem, aqui vai:

Entre as folhas do verde O
O príncipe acordou contente. Era dia de caça. Os cachorros latiam no pátio do castelo. Vestiu o colete de couro, calçou as boas. Os cavalos batiam os cascos debaixo da janela. Apanhou as luvas e desceu. Lá embaixo parecia uma festa. Os arreios e os pelos dos animais brilhavam ao Sol. Brilhavam os dentes abertos em risadas, as armas, as trompas que deram o sinal de partida.
Na floresta também ouviram a trompa e o alarido. Todos souberam que eles vinham. E cada um se escondeu como o pode. Só a moça não se escondeu. Acordou com o som da tropa, e estava debruçada no regato quando os caçadores chegaram.
Foi assim que o príncipe a viu. Metade mulher, metade corça, bebendo no regato. A mulher tão linda. A corça tão ágil. A mulher queria amar, a corça ele queria matar. Se chegasse perto será que ela fugiria? Mexeu num galho, ela levantou a cabeça ouvindo. Então o príncipe botou a flecha no arco, retesou a corda, atirou bem na pata direita. E quando a corça-mulher dobrou os joelhos tentando arrancar a flecha, ele correu e a segurou, chamando homens e cães.
Levaram a corça para ao castelo. Veio o médico, trataram do ferimento. Puseram a corça num quarto de porta trancada. Todos os dias o príncipe ia visita-la. Só ele tinha a chave. E cada vez se apaixonava mais. Mas a corça-mulher só falava a língua da floresta e o príncipe só sabia ouvir a língua do palácio. Então, ficavam horas se olhando calados, com tanta coisa para dizer.
Ele queria dizer que a amava tanto, que queria casar com ela e tê-la para sempre no castelo, que a cobriria de roupas e joias, que chamaria o melhor feiticeiro do reino para fazê-la virar mulher.
Ela queria dizer que o amava tanto, que queria se casar com ele e leva-lo para a floresta, que lhe ensinaria a gostar dos pássaros e das flores e que pediria à Rainha das Corças para dar-lhe quatro patas ágeis e um belo pelo castanho.
Mas o príncipe tinha a chave da porta. E ela não tinha o segredo da palavra.
Todos os dias se encontravam. Agora se seguravam as mãos. E no dia em que a primeira lágrima rolou nos olhos dela, o príncipe pensou ter entendido e mandou chamar o feiticeiro.
Quando a corça acordou, já não era mais corça. Duas pernas só, e compridas, um corpo branco. Tentou levantar, não conseguiu. O príncipe lhe deu a mão. Vieram as costureiras e a cobriram de roupas. Vieram os joalheiros e a cobriram de joias. Vieram os mestres de dança para ensinar-lhe a andar. Só não tinha a palavra. E o desejo de ser mulher. Sete dias ela levou para aprender sete passos. E na manhã do oitavo dia, quando acordou e viu a porta aberta, juntou sete passos e mais sete, atravessou o corredor, desceu a escada, cruzou o pátio e correu para a floresta à procura de sua Rainha. O Sol ainda brilhava quando a corça saiu da floresta, só corça, não mais mulher. E se pôs a pastar sob as janelas do palácio.