segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

A águia e a galinha

Esta é uma história que me toca profundamente, quando se fala em correr atrás de nossos sonhos. Ela vem de um pequeno país da África Ocidental, Gana, narrada por um educador popular, James Aggrey, no século passado. Em meados de 1925, James havia participado de uma reunião de lideranças populares na qual se discutiam os caminhos da libertação do domínio colonial inglês. As opiniões se dividiam. Alguns queriam o caminho armado. Outros, o caminho da organização política do povo, caminho que efetivamente triunfou sob a liderança de Kwame N´Krumah. Outros se conformavam com a colonização à qual toda a África estava submetida. E havia também aqueles que se deixavam seduzir pela retórica dos ingleses. Eram favoráveis à presença inglesa como forma de modernização e de inserção no grande mundo tido como civilizado e moderno. O educador James Aggrey acompanhava atentamente cada intervenção. Num dado momento, porém, viu que líderes importantes apoiavam a causa inglesa e renunciavam aos sonhos de libertação. Ergueu então a mão e pediu a palavra. Com grande calma, própria de um sábio, e com certa solenidade, contou a seguinte história:
A águia e a galinha 
Era uma vez um camponês que foi à floresta vizinha apanhar um pássaro, a fim de mantê-lo cativo em casa. Conseguiu pegar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro junto às galinhas. Cresceu como uma galinha. 
Depois de cinco anos, esse homem recebeu em sua casa a visita de um naturalista. Enquanto passeavam pelo jardim, disse o naturalista: 
- Esse pássaro aí não é uma galinha. É uma águia. 
- De fato, disse o homem.- É uma águia. Mas eu a criei como galinha. Ela não é mais águia. É uma galinha como as outras. 
- Não, retrucou o naturalista.- Ela é e será sempre uma águia. Este coração a fará um dia voar às alturas. 
- Não, insistiu o camponês. Ela virou galinha e jamais voará como águia. 
Então decidiram fazer uma prova. O naturalista tomou a águia, ergueu-a bem alto e, desafiando-a, disse: 
- Já que você de fato é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, então abra suas asas e voe! 
A águia ficou sentada sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor. Viu as galinhas lá embaixo, ciscando grãos. E pulou para junto delas. 
 O camponês comentou: 
- Eu lhe disse, ela virou uma simples galinha! 
- Não, tornou a insistir o naturalista. - Ela é uma águia. E uma águia sempre será uma águia. Vamos experimentar novamente amanhã. 
No dia seguinte, o naturalista subiu com a águia no teto da casa. 
Sussurrou-lhe: 
- Águia, já que você é uma águia, abra suas asas e voe! 
Mas, quando a águia viu lá embaixo as galinhas ciscando o chão, pulou e foi parar junto delas. 
O camponês sorriu e voltou a carga: 
- Eu havia lhe dito, ela virou galinha! 
- Não, respondeu firmemente o naturalista. - Ela é águia e possui sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar. 
No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram bem cedo. Pegaram a  águia, levaram-na para o alto de uma montanha. O sol estava nascendo e 
dourava os picos das montanhas. 
O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe: 
- Águia, já que você é uma águia, já que você pertence ao céu e não à terra, abra suas asas e voe! 
A águia olhou ao redor. Tremia, como se experimentasse nova vida. Mas não voou. Então, o naturalista segurou-a firmemente, bem na direção do sol, de sorte que seus olhos pudessem se encher de claridade e ganhar as dimensões do vasto horizonte. 
Foi quando ela abriu suas potentes asas. Ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto e voar cada vez mais para o alto. Voou, voou, até confundir-se com o azul do firmamento. E nunca mais retornou.

Existem pessoas que nos fazem pensar como galinhas. E ainda até pensamos que somos efetivamente galinhas. Porém é preciso ser águia. Abrir as asas e voar. Voar como as águias. E jamais se contentar com os grãos que jogam aos pés para ciscar”.  Extraído de artigo publicado pela Folha de São Paulo, por Leonardo Boff, teólogo, escritor e professor de ética da UERJ

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Histórias, memórias e amor

Este curta brasileiro intitulado Dona Cristina Perdeu a Memória, de Ana Luiza Azevedo, traz a história do menino Antônio, que descobre que sua vizinha Cristina conta histórias diferentes sobre provavelmente os mesmos fatos de sua vida. Eles passam a se encontrar todos os dias e nesses encontros surge o respeito e cresce a cumplicidade entre eles. Impossível não se lembrar do igualmente lindo livro Guilherme Augusto Araújo Fernandes, só que aqui meio ao contrário.  O que é encantador também. Emocionante, singelo e extremamente sacado e inteligente, um filme de sorrir e de chorar.. 





quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Um conto

Não se desafia a alma feminina. Ela sempre falará mais forte. Traz a força da Deusa e de sua ancestralidade, seja lá como for. Em algum momento, a mulher selvagem dará um jeito de reaparecer, reaprender, resurgir, resignificar. É no que acredito. E é o que vejo quando leio este lindo conto de Marina Colasanti, publicado no livro Uma ideia toda azul.

Por entre as folhas do verde
Era dia de caçada. O príncipe acordou contente. Era dia de caçada. Os cachorros latiam no pátio do castelo. Vestiu o colete de couro, calçou as botas. Os cavalos batiam os cascos debaixo da janela. Apanhou as luvas e desceu.
Lá embaixo parecia uma festa. Os arreios e os pelos dos
animais brilhavam ao sol. Brilhavam os dentes abertos em
risadas, as armas, as trompas que deram o sinal de partida.
Na floresta também ouviram a trompa e o alarido. Todos souberam que eles vinham. E cada um se escondeu como pôde.
Só a moça não se escondeu. Acordou com o som da tropa, e estava debruçada no regato quando os caçadores chegaram.
Foi assim que o príncipe a viu. Metade mulher, metade corça, bebendo no regato. A mulher tão bonita. A corça tão ágil. A mulher ele queria amar, a corça ele queria matar. Se chegasse perto será que ela fugia? Mexeu num galho, ela levantou a cabeça ouvindo. Então o príncipe botou a flecha no arco, retesou a corda, atirou bem na pata direita. E quando a corça-mulher dobrou os joelhos tentando arrancar a flecha, ele correu e a segurou, chamando homens e cães.
Levaram a corça para o castelo. Veio o médico, trataram do ferimento. Puseram a corça num quarto de porta trancada.
Todos os dias o príncipe ia visitá-la. Só ele tinha a chave. E cada vez se apaixonava mais. Mas a corça-mulher só falava a língua da floresta e o príncipe só sabia ouvir a língua do palácio.
Então ficaram horas se olhando calados, com tanta coisa para dizer.
Ele queria dizer que a amava tanto, que queria casar com ela e tê-la para sempre no castelo, que a cobriria de roupas e jóias, que chamaria o melhor feiticeiro do reino para fazê-la virar toda mulher.
Ela queria dizer que o amava tanto, que queria casar com ele e levá-lo para a floresta, que lhe ensinaria a gostar dos pássaros e das flores e que pediria à Rainha das Corças para dar-lhe quatro patas ágeis e um belo pelo castanho.
Mas o príncipe tinha a chave da porta. E ela não tinha o segredo da palavra.
Todos os dias se encontravam. Agora se seguravam as mãos. E no dia em que a primeira lágrima rolou dos olhos dela, o príncipe pensou ter entendido e mandou chamar o feiticeiro.
Quando a corça acordou, já não era mais corça. Duas pernas só e compridas, um corpo branco. Tentou levantar, não conseguiu. O príncipe lhe deu a mão. Vieram as costureiras e a cobriram de roupas. Vieram os joalheiros e a cobriram de jóias. Vieram os mestres de dança para ensinar-lhe a andar. Só não tinha a palavra. E o desejo de ser mulher.
Sete dias ela levou para aprender sete passos. E na manhã do oitavo, quando acordou e viu a porta aberta, juntou sete passos e mais sete, atravessou o corredor, desceu a escada, cruzou o pátio e correu para a floresta à procura de sua Rainha.
O sol ainda brilhava quando a corça saiu da floresta, só corça, não mais mulher. E se pôs a pastar sob as janelas do palácio.