quarta-feira, 29 de junho de 2011

O Homem Atento

Já é clichê dizer que prestamos atenção a todos, menos a nós mesmos. Padeço desse mal há anos, e pago um ônus alto por isso. Tento mudar, tento. Tentamos. Todos nós. E para nos lembrar de que isso é vital, coloco aqui este belíssimo conto de Marina Colasanti.
 
O Homem Atento

Por mais que recuasse com a memória, aquele homem não encontrava em sua vida um só momento em que não estivesse estado atento.  Atento a tudo, plenamente, abertos os sentidos como se o seu corpo fosse a porta de entrada do mundo. Não dormia. Mal comia. Os olhos sempre despertos viam o que acontecia à sua frente, e pareciam ver com igual clareza o que acontecia atrás, ou mesmo longe deles. O nariz captava todos os cheiros, decifrava todos os perfumes. Os ouvidos distinguiam os componentes do silêncio tão bem quanto os da algazarra. Sentado numa almofada, assim prestava atenção, certo de que, enquanto tomasse conhecimento de tudo o que acontecia, estaria controlando a organização do mundo. Imóvel, sem permitir que qualquer distração viesse perturbá-lo, abrindo em sua vigilância uma brecha por onde pudesse entrar a desordem.
      E passados tantos anos em idêntica posição, chegou a tarde em que ouviu passos na rua, aproximando-se da sua casa. E porque eram lentos, soube que eram de um velho. E porque se arrastavam de leve, soube que o velho estava cansado. E porque nunca os tinha ouvido antes, soube que ele vinha de longe. E quando afinal os passos pararam diante da sua porta, preparou-se para ouvir as batidas.
     Toc, toc, ecoaram nos cômodos as pancadas. Abriram os criados, deixando que o velho entrasse com seu cheiro de poeira e calor do sol ainda grudado nas pregas das roupas. Que se refrescasse, disseram trazendo-lhe um jarro e taça.
    O viajante levava justamente a água aos lábios, quando viu o Homem atento. Imóvel na penumbra como se ignorasse sua chegada, mantinha-se  entregue á sua tarefa, olhos abertos sem bater pestanas. Aproximou-se o viajante. O Homem o olhava, sem deixar de ver além e aquém dele, sem deixar que sua presença sequer encrespasse a transparência da concentração. O Homem o olhava, mudo.
    E o viajante teve pena.
    Afastou-se para um lado, os olhos do homem não o acompanharam. Afastou-se para o outro, os olhos continuaram fixos à frente. Mas quando o viajante colheu uma centopéia no vaso de plantas, bastou ao Homem Atento ouvi-la caminhar sobre aquela mão, para saber que lhe faltava uma pata. E quando, afastando-se até o jardim, o viajante trouxe um camaleão, bastou ao Homem Atento ver sua cor, para saber em que galho estivera deitado.
   Então o viajante pegou a um canto um espelho de cobre e o colocou diante do olhar do Homem Atento. Na superfície polida, um rosto pálido como a lua, descorado por longa penumbra, encarou o Homem Atento. Mas não bastou ao Homem Atento olhar os olhos nas olheiras fundas, as brancas têmporas, para reconhecer-se. Pois há tantos anos não se via, que havia esquecido seu rosto.
    E agora, diante daquele reflexo, surpreendia-se que fosse seu. A tal ponto, que precisou levantar a mão para tocar-se, certificando-se de que, sim, a mão que se erguia no espelho era a mesma que lhe alisava a barba.
    Prestando atenção no mundo, deixara de prestar atenção em si. Nunca mais se olhara, sequer espelhado na água, Nunca mais acariciara a pele. Descuidara-se de contar o tempo. Mas o tempo havia passado apesar dele, e o rosto que acreditava jovem já não existia. Ali estava a brecha, nunca pressentida, por onde a desordem teria entrado no mundo, se apenas por um minuto ele estivesse em seu controle.
   Com voz que há tantos anos não ouvia, o Homem pediu aos criados que lhe trouxessem um pente. Estendeu até o marfim os dedos magros. Depois, pela primeira vez na vida, distraiu-se. Fechando os olhos, deixou a sombra de um sorriso tocar-lhe a expressão. E inclinando a cabeça para trás, longamente penteou os cabelos que lhe desciam pelos ombros.


domingo, 26 de junho de 2011

Um arco-íris de diversidade

A diversidade foi para mim uma lição de amor. Muito amor e respeito. muito amor e coragem, Foi sim minha grande lição de vida. Por isso, essa história, que adaptei do livro de Geert de Kockere, um belga que estudou para ser professor, tornou-se jornalista e hoje escreve para crianças.
Adorei essa história.


Azul

Ana é uma rainha. Mas ninguém sabe disso. Só ela.  Ana gosta muito de azul. Tudo em sua vida é azul. Pela manhã sai de sua cama azul-escuro, toma café em sua xícara azul-claro. Coloca seu lindo vestido azul celeste e sai para seu jardim, cheio de belas flores azuis de todos os tons. Ninguém sabe porque Ana gosta tanto de azul. Nem ela mesma sabe.
Ana também gosta de coisas malucas: em sua casa azul escura, à beira do mar azul, ela coleciona coisas esquisitas, como um tijolo azul-escuro que tem soluços, uma cabeça azul-clara nas nuvens e um peixinho azul-escuro que canta ópera.

Um belo dia, quando Ana estava na praia procurando conchinhas azuis, se deparou com o rei Amarelo-Ouro.  Com seus pés amarelos descalços. Ele disse “ohh!’, e nada mais. No dia seguinte, o rei Amarelo-Ouro volta à praia. E lá estava Ana novamente. Ele novamente diz “oh!”, e nada mais. Mas Ana gosta assim mesmo. E todos os dias, a Rainha Ana Azul se encontra com o  Rei Amarelo-Ouro.
Ana gosta do Rei Amarelo-Ouro e talvez até queira se casar com ele. Mas não sabe se um dia vai gostara de amarelo. “O amor é azul”, pensa Ana.  “Pois o mar é azul e o amor é tão profundo quanto o mar”.  

Mas ela gosta tanto do rei Amarelo-Ouro, que decide treinar bastante para gostar do amarelo. E assim, no seu bule azul-escuro, ela pinta flores amarelas. As cadeiras da mesa azul ela pinta de amarelo. E quando Ana já acha que gosta um pouquinho de amarelo, ela põe uma blusa azul com bolinhas amarelas e um sapato azul com cadarços amarelos. “Amarelo é bonito. Não tanto quanto o azul, mas é bonito”, decide Ana. E sai para a praia em busca do rei Amarelo-Ouro.
Bem na hora, pois o rei já está na praia a esperá-la, com seus pés amarelos descalços. 

E aí ele diz para ela “Eu te amo”. E Ana então mostra para ele seu sapato azul com cadarços amarelos. E ele mostra para ela sua coroa dourada, com bolinhas azuis.
E assim, eles conversam, conversam, conversam. Palavras azuis e amarelas misturadas. Da manhã amarelo-ouro até à noite azul-escura.
E assim, eles se casam. E vão morar em um palácio amarelo-ouro à beira do mar azul-profundo.

Um tempo depois, eles têm filhos. Mas não são crianças comuns. São crianças verdes. Exceto Amanda, que é azul como Ana. Quando Amanda cresce, casa-se com o Príncipe Noite Vermelha. E do casamento nascem crianças roxas. Exceto Vinícius, que é vermelho como o pai. E quando cresce, Vinícius casa-se com Laura. E nascem crianças cor de laranja, exceto Alice, que é amarela como Laura.

Agora, no palácio amarelo-ouro à beira do mar azul-profundo, moram crianças vermelhas, verdes, amarelas, roxas, crianças cor de laranja e azuis.
E quando chove, e o Sol volta a aparecer, elas pulam juntas, formando um grande arco-íris sobre o palácio.

domingo, 19 de junho de 2011

Palavras dos contadores de histórias

Me interesso muito sobre a ancestralidade e a oralidade das histórias. É um assunto que tem me levado a buscar pesquisadores, escritores e contadores de historias. Em meio às leituras, novamente me deparei com esse lindo conto. Tão conciso quanto singelo, é um conto maravilhoso recolhido da tradição oral africana.


Conta-se na África Ocidental que não havia histórias. E por isso não havia também sabedoria. O mundo era muito triste. Por isso, o primeiro contador de histórias foi também um buscador de histórias, que saiu pelo mundo afora acompanhado de um pássaro-escrivão: o marabu. O marabu é o único pássaro que sabe qual das penas do seu traseiro deve ser arrancada para que, com ela se possa escrever – o que faz dele um pássaro especial.

Andaram pelo mato afora, pelas savanas e ao longo dos rios para escutar os ventos, as pedras, as águas, as árvores e os animais. E encontraram muitas pessoas até então desconhecidas, que iam lhe contando as suas histórias.
Munido da pena arrancada de seu traseiro e utilizando uma tinta feita de água, pó de carvão e goma arábica, o marabu-escrivão anotava cuidadosamente todas as histórias que escutava. E o buscador e contador de histórias caminhava e pensava “não vou conseguir me lembrar de todas essas histórias”. Mas o marabu continuava a ouvir e a escrever.

Quando, depois de muito tempo, voltaram para casa, o buscador de histórias obteve a solução para aquilo que o preocupava. Seguindo o conselho do marabu, encheu de água uma grande cabaça e nela mergulhou todas as histórias escritas.  Durante toda a noite, naquela cabaça – que na África e chama canari – as palavras escritas com tinta se dissolveram na água. No dia seguinte, o marabu mandou que o contador de histórias bebesse todo o conteúdo daquela canari.

Assim, todas as histórias bebidas tornaram-se histórias sabidas.

 E se você, por acaso, precisar beber uma história, escute o meu conselho: beba tudo. Não deixe nada no fundo do copo, porque isso poderia provocar um branco na sua memória.

E essa é a razão pela qual todos os contadores de histórias sempre foram também bons bebedores!!


sábado, 11 de junho de 2011

O eterno pisca-pisca de Emília

O tema de hoje na palestra da Associação Viva e Deixe Viver, através do qual é feito o maravilhoso trabalho de contar histórias para crianças em hospitais, era sobre morte. Um assunto, confesso, bastante delicado para mim, já que a visita dessa indestrutível dama à minha casa me levou para o mais triste e escuro dos mundos. Mas a palestra foi maravilhosa. E foi fantástico redescobrir esse trecho do livro Memórias de Emília - lido e esquecido por mim há muitos anos – em que a boneca define a questão sobre vida e morte para o Visconde de Sabugosa.
E viva Monteiro Lobato !!

O Eterno Pisca-pisca

...a vida, Senhor Visconde, é um pisca - pisca.
A gente nasce, isto é, começa a piscar.
Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu.
Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso.
É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda,


Até que dorme e não acorda mais.
A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso.
Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia.
pisca e mama;
pisca e anda;
pisca e brinca;
pisca e estuda;
pisca e ama;
pisca e cria filhos;
pisca e geme os reumatismos;
por fim, pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre - perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?

segunda-feira, 6 de junho de 2011

A magia da transformação


 
Sábado contei histórias na Livraria PanaPaná. Foi bárbaro! Uma das histórias foi sobre um ... cocô. Foi muito interessante ver as crianças tapando o nariz, gritando "eca, que nojo", fazendo caretas, só de imaginar meu inusitado personagem daquela tarde. No entanto, essa é uma história sobre a natureza das coisas e sua transformação - o que talvez crianças e até mesmo alguns adultos ali presentes possam não ter percebido naquele momento. Mas toda história sempre volta um dia à nossa mente com o seu verdadeiro sentido. Por isso, conto essa história aqui.


O Cocô

Era uma vez... um cocô. 
Um cocô fedidinho, largado no meio da calçada.
Sofria, que sofria, pois  todo mundo que passava por ele dizia coisas como “eca”, “que nojo”, “ai, que horror”. Sem contar os que desviavam, passavam para o outro lado da calçada, e ainda diziam “que absurdo, uma calçada suja assim” ou “ninguém vai tirar isso daqui?”. E o que era pior, além de toda essa rejeição, o cocô recebia na cara fumaça de ônibus e caminhão, xixi de cachorro, cuspida de gente... ai, que isso não era vida. Ele suspirava e pensava o quanto era infeliz e que nada podia ser pior que aquilo tudo.

Ah, mas um dia, o pior aconteceu. Quando o cocô menos esperava, ele foi embrulhado e carregado. Sentia que tudo estava chacoalhando e ele estava indo de um lado para o outro. De repente, foi jogado num lugar escuro, muito escuro. E quando percebeu que estava num lugar pior do que na calçada, a situação ficou ainda mais triste: ele recebeu na cara um monte de coisa que nem sabia o que era. Ficou tudo mais escuro e apertado. O cocô mal podia se mexer. 

Depois de um tempo, ele nem sabia o quanto, talvez dias, a coisa piorou mais um pouco: ele começou a sentir um coisa revirando, uma coisa no seu corpo revirando, uma coisa que embolava tudo, se mexendo como se ele estivesse subindo, crescendo.. E o pobre do cocô percebeu que sua vida iria ficar ainda mais complicada. De repente, quando ele menos esperava, uma luz bem forte bateu em seus olhos (sim o cocô tinha olhos). Agora e o meu fim, ele pensou.

E criou coragem e olhou para cima, na direção da luz. Firmou os olhos e... achou muito bonito o que viu!  Acontece que aquele cocô fedidinho tinha sido carregado por um jardineiro e enterrado em um lindo jardim, servindo de adubo. Aquele cocozinho havia ajudado a uma linda rosa vermelha brotar. 
E, pela primeira vez, ele sentiu-se muito importante e feliz!




quarta-feira, 1 de junho de 2011

Bruxas do bem assim assim

Uma história que adoro contar. Foi enviada por minha amiga Maria José, que a recebeu das terras de Portugal. Quando conto, faço pequenas variações. Mas também, quem conta um conto...

O gosto das bruxas
Era uma vez uma menina que estava presa na torre mais alta de um castelo. Ela era um princesa, mas não lhe valia de nada, porque perdera os seus pais e o reino, numa guerra.  Era o tempo das fadas. Por isso a menina disse, para que as paredes ouvissem:
— Se uma fada me salvasse, fosse boa, fosse má ou assim-assim, eu repartia com ela o tesouro do meu perdido reino, que só eu sei onde está enterrado.
As paredes, todo mundo sabe, não só tem ouvidos, como boca também... E estas ouviram e contaram uma para as outras, de maneira que a parede da torre onde estava a princesa contou para a parede da torre ao lado, que por sua vez contou para a parede da torre do castelo da frente, que contou para a torre da igreja, que contou... E então, assim do nada, uma velha fada apareceu na sala.
—Eeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeepa!!!!!! cheguei!!!!!!  — disse a fada.
— Você é uma fada boa? — perguntou a menina.
— Das veiz sim, das veiz não, respondeu a fada.
É que ela era uma fada assim-assim, assim-assim e para provar que não era das melhores, mas também não era das piores, impôs, uma condição. Salvava a menina, mas, antes, ela tinha de adivinhar o seu nome. E avisou logo que não tinha um nome lá muito mimoso.
A menina pensou um pouco e então falou, — Acho que é Serafina.
Nem pensar!!!
Não era Serafina, nem Leopoldina, nem Marcolina, nem Eufrásia nem Tomásia. Ou quem sabe Ibéria e Pulquéria? Nem Eustáquia e Teodósia, nem Venância, nem Bonifácia. Nem sequer Capitolina.
A princesa esgotou os nomes mais esquisitos que conhecia. E a fada sempre com a cabeça a dizer que não, não, não. Até que propôs o seguinte negócio:
— Vou te salvar, mesmo que não descubra o meu nome, mas fico com o tesouro só para mim. Todinho?, perguntou a menina. Todinho!, respondeu a fada.
A menina concordou. Não tinha outro jeito...Então,  a fada pronunciou umas palavras mágicas, como todo fada. E, como um passe de mágica,  ela e a princesa atravessaram as paredes da torre prisão. Uma vez em liberdade, a princesa ensinou o local onde estava escondido o tesouro e pronto, a história acaba aqui.
E o nome da fada-bruxa? Também a menina quis saber.
— Eu me Chamo Joaninha — respondeu a fada-bruxa, baixando os olhos, envergonhada.
— Mas Joaninha é um nome bonito — estranhou a princesa.
— Eu não acho — disse ela. — Gostava mais de ser Virgolina Zebedéia.
Vá lá a gente entender o gosto das bruxas...