quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Sobre o amor

Acabo de ler o livro Sobre o Amor, de autoria de Leandro Konder, publicado pela Editora BoiTempo, Foi uma experiência absolutamente encantadora. Para abordar o amor, Konder reúne autores de todos os tempos, de filósofos como Sócrates aos revolucionários Marx e Rosa de Luxemburgo. de poetas como Camões, Goethe e Drummond a ficcionistas como Dostoiévski, Balzac, Cervantes, Shakespeare e Guimarães Rosa. O que todos eles pensaram sobre o amor? Konder nos oferece a resposta com a generosidade do próprio amor, de forma leve e fluida, deliciosa de ler. Estava assim, embriagada de amor, quando recebo de minha amiga Rosely Guilen outro maravilhoso texto sobre esse sentimento que nos alimenta e nos devasta ao mesmo tempo. Trata-se do conto O amor de um pássaro por um lagarto, que faz parte do livro A Macaúba da Terra, do talentossísimo Gero Camilo, Editora Dulcina.Como coincidências não existem, e o recado dado pelo Universo era para que eu falasse de amor, posto aqui a belissima história dos improváveis amantes 

O AMOR DE UM PÁSSARO POR UM LAGARTO
O pássaro era um Airerê. O lagarto era um Kilezum. Airerê é porção de um. Kilezum é o fragmento. Airerê andando no céu avistou Airerê na sombra do chão. Coração cai, penas de amor. Kilezum avistou Airerê na sombra do chão. Coração saltou pras nuvens, rabadas de amor. Mas Airerê não podia descer, pois a família de Kilezum lambia os lábios ao lhe ver. Kilezum não podia voar, pois asas não tinha, embora tivesse tentado fabricá-las. Kilezum colhia as penas de Airerê e as guardava em casa com a intenção de construir asa. Airerê as lançava, mas Kilezum pedia:
- Não jogue por demais, amado, ou ficarás pelado e cairás.
- Pois venha logo, amado – respondia Airerê. Estou ficando cansado. Veja só que tenho asas quando queria bicar teus passos!

Kilezum desesperado de amor, sem respaldo da família que lambia os lábios, foi se aconselhar com o sapo. - Eu, tivesse a tua idade e o teu rabo, disse-lhe o sapo, me contentaria com as lagartixas do lago, mas como bem sei que ao amor não se pede conveniência, te aconselho a começar pelo pequeno. Vai aprendendo a pular meu filho, vai aprendendo.

Kilezum treinou incessantemente. Mas suas pernas eram curtas e não ajudavam. Foi então que, raivoso por não conseguir, bateu com força o rabo no chão e no mesmo instante saltou pés-mãos e Kilezum pulou. Aprendeu depressa. Mortais. Frontais. Ladoais. Saltos que deixava todos com inveja. E assim era que Airerê ia assistindo ao amado e cada vez mais cansado Airerê se encontrava.
- Já estou indo, amado! Gritava Kilezum entre os saltos.
Madrugada, o canto do pássaro apaixonado e insone. Lá embaixo Kilezum já cansado, com o rabo machucado, cai de dor e chora de amor derramado, Kilezum adoece. A família lambe os lábios. Levam-no para o buraco. Chamam Airerê. Dizem que Kilezum está morrendo e precisa vê-lo. Prometem não comê-lo. Kilezum num gemido febril solta um assobio que aprendeu com o amado, dizendo que a paixão é vil e que não desça, pois a família lambe os lábios.

Sete dias. Kilezum ficou entocado. Sete dias Airerê planou acordado. Não sabia se mais quando era céu que chovia. O pássaro não cessava nunca seu canto, era a única forma de tocar o amado. Criou sete temas para os sete dias e as melodias acudiam seu cansaço. As notas do amor sentido fortificavam suas asas. Ora planando, ora rodopiando no espaço, Airerê chamava Kilezum.
Foi então que ao raiar do sétimo, Airerê adormecido em melodia, eis que aparece no buraco um rabo. Sai Kilezum fortificado. Airerê dá mortais extrovertidos tamanho seu corpassáro se egrava. Eles riem num riso só. Kilezum beija a sombra de Airerê. Airerê protege o amado do sol. Eles passeiam pelo vale. A família escondida vai atrás lambendo os lábios. Trocam a guarda das árvores para que Airerê não pouse. Outros ficam espalhados pelo mato. Mas os amados não ligam e passeiam enamorados. Airerê esculpe nuvens com as asas. Kilezum escreve poemas com o rabo. Airerê dança ao batuque de Kilezum nos bambus. Kilezum beija o bico de Airerê nas folhas. Airerê sente as mãos de Kilezum no vento.

Mais sete dias passaram, dessa vez, dias de companhia. Foi quando Kilezum novamente quis ter asas. E a família emputecida com o lagarto vai atrás lambendo os lábios. Kilezum colhe galhos na floresta, com cipós amarra as penas de Airerê nas costas e no primeiro vôo vai, mas volta. A família gargalha lambendo os lábios, Kilezum não se intimida. O problema são as pernas curtas que não ajudam. Existem cipós amarrados nas pernas que precisam não ter chão para criarem o movimento dos galhos. Foi quando Kilezum lembrou do sapo: ... ao amor não se pede conveniência, te aconselho a começar pelo pequeno. Vai aprendendo a pular meu filho, vai aprendendo. Num impulso de amor alcançado bateu com o rabo, saltou do chão como um lagartosapopássaro, as pernas batiam palmas apressadas enquanto a estrutura de cipó galhos e penas escalavam o vento e pro céu alcançavam. 

Kilezum voou, voou, voou ... A família desacreditou e amaldiçoou Kilezum lambendo os lábios. O chão foi ficando longe e o lagartosapopássaro ia ao encontro do amado. Era lindo ver o mundo de cima e os bichos da terra e os rios e as árvores e a família se estapeando lá embaixo. Os olhos de Kilezum estavam embriagados com a beleza da terra. Airerê foi a seu encontro. Ali mesmo no colchão infinito amaram-se que o azulão do céu gozou. O sol gozou.

Bichos da terra e alados uivaram, até que enfim os amados se tocaram!
Kilezum sentiu o cipó afrouxar dos lados. As penas de Airerê nas asas do amado como flor  despetaladas foram com o vento e Kilezum ficou botão. Ainda acudiu com o rabo, mas foi inútil. Olhou no olho de Airerê, agradeceu a Deus e entregou o corpo a queda. Lá do alto vem caindo Kilezuuuuuuummmmm ... Airerê desesperado resolve salvar seu irmão, voa para o chão e põe seu corpo embaixo do amado amortecendo a sua queda. Kilezum vive, Airerê quebrou as asas. E a família... vem atrás lambendo os lábios.
- Não deixe que me matem. Ceie a minha carne, pede Airerê ao seu amado.
- Não permitirei que te matem. Cearei a tua carne, responde Kilezum ao seu amado.
Assim foi que o lagarto comeu o pássaro. E o paraíso não morreu, pois foi pra dentro do lagarto.

Quanto à família, ainda hoje lambe os lábios.

sexta-feira, 20 de março de 2015

Dia Internacional do Contador de Histórias

Hoje comemoramos o Dia Internacional do Contador de Histórias. Alegria, alegria! Que nossas palavras continuem encantadas, que nossos corações continuem abertos e que nossa alma continue plena para que esse nosso ofício contribua para que o mundo seja mais leve e as pessoas mais felizes. Para comemorar, posto essa história, generosamente oferecida pela encantadora Clarissa Pinkola Estes.

O Dom da História

O amado Bal Shem Tov estava à morte e mandou chamar seus discípulos.
- Sempre fui o intermediário de vocês e, agora, quando eu me for, vocês terão que fazer isso sozinhos. Vocês conhecem o lugar da floresta onde eu invoco a Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do mesmo modo. Vocês sabem acender a fogueira e sabem dizer a oração. Façam tudo e Deus virá.

Depois que Bal Shem Tov morreu, a primeira geração obedeceu exatamente as suas instruções. E Deus sempre veio.  Na segunda geração, porém, as pessoas já haviam se esquecido do jeito que se acendia a fogueira como Bal Shem Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas ficavam paradas no local especial da floresta, diziam a oração e... Deus vinha.

Na terceira geração, as pessoas já não se lembravam de como acender a fogueira, nem do local da floresta. Mas diziam a oração assim mesmo. E Deus vinha.
Na quarta geração, ninguém se lembrava de como se acendia a fogueira, ninguém sabia mais em que local exatamente da floresta deviam ficar e, finalmente, não conseguiam se recordar nem da própria oração. Mas uma pessoa ainda se lembrava da história sobre tudo aquilo. E essa pessoa relatou essa história em voz alta.

E Deus ainda veio...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

A alma que fala

Tenho pensado muito na minha essência. A cada encontro com nossa matilha descubro e reflito sobre algo tão interno quanto intenso. Tem sido um movimento tão forte dentro de mim, que busquei uma história sobre a essência de cada um de nós para publicar no blog. E, claro, Marina Colasanti novamente me surgiu, com uma das mais belas metáforas que já li.  Chama-se “Entre as folhas do verde O”, nome que aparece em uma canção popular da Idade Média, com a qual Marina abre esta história em seu livro Uma Ideia Toda Azul e que muito provavelmente a inspirou. História de amor, história sobre a transformação necessária para o amor? História sobre a dominação de alguém que pensa que ama ou ainda sobre a verdade daquilo que você escolheu para ser, para sentir? Será de tudo um pouco?  O fato é que a essência é o que fala mais alto, são as palavras de nossa alma. Bem, aqui vai:

Entre as folhas do verde O
O príncipe acordou contente. Era dia de caça. Os cachorros latiam no pátio do castelo. Vestiu o colete de couro, calçou as boas. Os cavalos batiam os cascos debaixo da janela. Apanhou as luvas e desceu. Lá embaixo parecia uma festa. Os arreios e os pelos dos animais brilhavam ao Sol. Brilhavam os dentes abertos em risadas, as armas, as trompas que deram o sinal de partida.
Na floresta também ouviram a trompa e o alarido. Todos souberam que eles vinham. E cada um se escondeu como o pode. Só a moça não se escondeu. Acordou com o som da tropa, e estava debruçada no regato quando os caçadores chegaram.
Foi assim que o príncipe a viu. Metade mulher, metade corça, bebendo no regato. A mulher tão linda. A corça tão ágil. A mulher queria amar, a corça ele queria matar. Se chegasse perto será que ela fugiria? Mexeu num galho, ela levantou a cabeça ouvindo. Então o príncipe botou a flecha no arco, retesou a corda, atirou bem na pata direita. E quando a corça-mulher dobrou os joelhos tentando arrancar a flecha, ele correu e a segurou, chamando homens e cães.
Levaram a corça para ao castelo. Veio o médico, trataram do ferimento. Puseram a corça num quarto de porta trancada. Todos os dias o príncipe ia visita-la. Só ele tinha a chave. E cada vez se apaixonava mais. Mas a corça-mulher só falava a língua da floresta e o príncipe só sabia ouvir a língua do palácio. Então, ficavam horas se olhando calados, com tanta coisa para dizer.
Ele queria dizer que a amava tanto, que queria casar com ela e tê-la para sempre no castelo, que a cobriria de roupas e joias, que chamaria o melhor feiticeiro do reino para fazê-la virar mulher.
Ela queria dizer que o amava tanto, que queria se casar com ele e leva-lo para a floresta, que lhe ensinaria a gostar dos pássaros e das flores e que pediria à Rainha das Corças para dar-lhe quatro patas ágeis e um belo pelo castanho.
Mas o príncipe tinha a chave da porta. E ela não tinha o segredo da palavra.
Todos os dias se encontravam. Agora se seguravam as mãos. E no dia em que a primeira lágrima rolou nos olhos dela, o príncipe pensou ter entendido e mandou chamar o feiticeiro.
Quando a corça acordou, já não era mais corça. Duas pernas só, e compridas, um corpo branco. Tentou levantar, não conseguiu. O príncipe lhe deu a mão. Vieram as costureiras e a cobriram de roupas. Vieram os joalheiros e a cobriram de joias. Vieram os mestres de dança para ensinar-lhe a andar. Só não tinha a palavra. E o desejo de ser mulher. Sete dias ela levou para aprender sete passos. E na manhã do oitavo dia, quando acordou e viu a porta aberta, juntou sete passos e mais sete, atravessou o corredor, desceu a escada, cruzou o pátio e correu para a floresta à procura de sua Rainha. O Sol ainda brilhava quando a corça saiu da floresta, só corça, não mais mulher. E se pôs a pastar sob as janelas do palácio.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Para compor nossos silêncios

Manoel de Barros me lembrava Fernando Rodrigues. Ambos tinham uma vocação para o inventar. E também o desinventar. Fernando Rodrigues me deu um livro de Manoel de Barros chamado Memórias inventadas. Um livro de capa marrom e páginas cor de creme, - as cores se mopstravam nas pequenas iluminuras, de Martha Barros, recheando cada texto.  Anos depois, a Mariana Rodrigues me deu o mesmo livro, mas esse vinha mais colorido, capa dura, azul celeste. As iluminuras tomando toda a página, como se fosse o livro para crianças.  Mas eu já sabia que  Manoel de Barros não era para este ou aquele público... mas sim para a alma de todos nós.
Hoje, o poeta foi partiu. Foi, com certeza, brincar com palavras e desinventar memórias em um céu mais sereno. Quem puder ouvi-lo a partir de agora, ganha o que perdemos com pesar nesta manhã.  Por isso, coloco aqui um texto que gosto muito. Tanto quanto o poema O apanhador de desperdícios. Este - O menino que ganhou um rio -  me traz a generosidade do menino inventador de coisas. Puro encantamento.

O menino que ganhou um rio
Minha mãe me deu um rio.
Era dia de meu aniversário e ela não sabia o que me presentear.
Fazia tempo que os mascates não passavam naquele lugar esquecido.
Se o mascate passasse a minha mãe compraria rapadura ou bolachinhas para me dar.
Mas como não passara o mascate, minha mãe me deu um rio.
Era o mesmo rio que passava atrás da casa.
Eu estimei o presente mais do que fosse uma rapadura do mascate.
Meu irmão ficou magoado porque ele gostava do rio igual aos outros.
A mãe prometeu que no aniversário do meu irmão ela iria dar uma árvore para ele.
Uma que fosse coberta de pássaros.
Eu bem ouvi a promessa que a mãe fizera ao meu irmão.  E achei legal.
Os pássaros ficavam durante o dia nas margens do meu rio
E de noite iriam dormir na árvore do meu irmão.
Meu irmão me provocava assim: minha árvore deu flores lindas em setembro. E o seu rio não dá flores! E eu respondia que a árvore dele não dava piraputanga.
Era verdade, mas o que nos unia demais eram os banhos nus no rio entre pássaros.

Nesse ponto nossa vida era um afago!

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Um novo ano - novas escolhas

Um novo período se inicia em minha vida e, por isso, busquei uma história. Encontrei esta, que já postei algumas vezes e decidi que seria ela novamente, pois me toca profundamente. A reflexão é sobre o desafio diário das escolhas que, muitas vezes, pesa demais, tornando nossos passos infinitamente difíceis. Por isso adoro este conto de Marina Colasanti, chamada "As Notícias e o Mel". Que maravilhosa escolha a desse rei...

As notícias e o Mel

Um dia o rei ficou surdo. Não como uma porta, mas como uma janela de dois batentes.  Ouvia tudo do lado esquerdo. Do lado direito, não ouvia nada. A situação era incômoda, Só atendia aos ministros que sentavam de um lado do trono. Aos outros, nem respondia. E até mesmo de manhã, se o galo cantasse do lado errado, Sua Majestade não acordava e passava o dia inteiro dormindo.
Foi quando mandou chamar o gnomo da floresta. E o gnomo, obediente, apareceu na corte. Veio voando, com suas asinhas. Tão pequeno que, embora todos avisados de sua chegada, quase o confundiram com um inseto qualquer.
Chegou e logo se entendeu com o rei, estabelecendo um trato.  Ficaria morando no ouvido direito e repetiria para dentro – e bem alto – tudo o que ouvisse lá de fora. Tendo asas, e desejando, poderia aproveitar seu parentesco com as abelhas para fabricar no ouvido real alguma cera e um pouco de mel. O trato funcionou às mil maravilhas. Tudo o que o gnomo ouvia, repetia em voz bem alta nas cavernas da orelha, e o eco e a voz do gnomo chegavam até o rei, que passou a entender como antigamente, de lado a lado.
Correu o tempo. Rei e gnomo, assim tão vizinhos, foram ficando cada dia mais íntimos. Um já sabia tudo do outro e era com prazer que o gnomo gritava e era com prazer que o rei ouvia o zumbidinho das asas atarefadas no fabrico da cera e do mel. Uma certa doçura começou a espalhar-se do ouvido real para a cabeça e o rei foi ficando, aos poucos, mais bondoso.
Foi essa a causa da primeira mentira.
O Primeiro Ministro deu uma má notícia no ouvido esquerdo e o gnomo, não querendo entristecer o rei, transmitiu uma boa notícia no ouvido direito.
Foi essa a primeira vez que o rei ouviu duas notícias ao mesmo tempo. Foi essa a primeira vez que o rei escolheu a notícia melhor ...
Houve outras depois.
Sempre que alguma coisa ruim era dita ao rei, o gnomo a transformava em alguma coisa boa. E sempre que o rei ouvia duas notícias, escolhia a melhor delas.
Aos poucos, o rei foi deixando de prestar atenção naquilo que lhe chegava do lado esquerdo, E até mesmo de manhã, se o galo cantasse desse lado e o gnomo não repetisse o canto do galo, Sua Majestade esquecia-se de ouvir e continuava dormindo tranqüilo até ser despertado pelo chamado do amigo.
De um lado o mel escorria. Do outro, chegavam as preocupações, as tristezas, e todos os ventos maus pareciam soprar à esquerda de sua cabeça.
Mas o rei tinha provado o mel e a doçura era agora mais importante do que qualquer notícia. Entregou o trono e a coroa para o Primeiro Ministro. Depois chamou o gnomo para junto da boca e murmurou-lhe baixinho a ordem.
Obediente, o gnomo voou para o lado esquerdo e, aproveitando seu parentesco com as abelhas, fabricou algum mel e abundante cera, com a qual tapou para sempre o ouvido do rei.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Ter vontade e correr atrás

Ter coragem para correr atrás de seus sonhos.  Entender suas vontades e perceber o quanto elas importam para sua vida, sua alma.  Sentir uma coceira, que pode ser o que falta para transformar a sua vida (e coçar gostoso até doer). Eita coisa difícil... Já tive um monte de vontades, algumas delas eu respeitei, corri atrás. Não foi fácil, mas foi tão bom ...  E já tive um monte de exemplos também.  Dentro de casa mesmo, me deparei com filhas que deixaram o conforto e o aconchego da família para buscar seus sonhos, suas aventuras, seus ideais e até suas dúvidas em lugares bem distantes.  E também foi bom, até onde eu sei.  Sendo assim, sinto-me muito feliz em postar a história de hoje, de Jonas Ribeiro, lindamente ilustrada por Laura Michell e publicada pela Editora Callis. Acredito que ela seja uma homenagem para quem já sentiu vontade e foi atrás. Serve também para cutucar quem está morrendo de desejo, mas  prefere ficar sentado, esperando essa coceira/vontade passar.

O esconderijo das vontades

Era uma vez uma cidade onde moravam muitas vontades. Elas nasciam em um lugar escuro e silencioso e viviam por meses, anos, dentro das pessoas. Mas nem sempre as pessoas se davam conta de que havia uma vontade vivendo em algum canto de seu coração ou em alguma gaveta de seu pensamento. Quando a vontade percebia que não seria mesmo descoberta, ela deixava o esconderijo e voava para outro lugar do Universo. Ou, então, escolhia outra pessoa para nela se esconder. E, de preferência, uma pessoa que não estivesse tão ocupada assim e gostasse de olhar para dentro de si. 

Ah, e como as vontades eram sonhadoras! Sonhavam com a luz, com uma vida ruidosa. Queriam ser descobertas e crescer, crescer, só para conseguir saltar de seus esconderijos.

Nessa cidade, o padeiro sentia vontade de fazer pães mais macios e apetitosos. 
A costureira sentia vontade de estudar moda em Paris. 
O piloto de avião sentia vontade de ser astronauta. 
A telefonista sentia vontade de ser locutora de rádio. 
O pianista sentia vontade de tocar com uma orquestra. 
A bióloga sentia vontade de morar na Amazônia.

Os moradores da cidade gostavam de suas profissões, mas sentiam vontade de fazer algo mais. Não havia graça em só fazer o que sabiam. Eles queriam mais, muito mais. 
E, todos os dias, o Sol se levantava e animava as vontades a sair de seus esconderijos. 
E, todas as noites, a Lua se levantava e convidava as vontades a sair de seus esconderijos. 
Acontece que, mesmo escondidas lá dentro, as vontades ouviam chamar seus nomes. 
Elas queriam sair para brincar e descobrir o mundo. 

Conforme o tempo foi passando, as pessoas mais corajosas embalavam suas vontades e lhes contava que o mundo era um lugar bom. 
Conversavam um pouquinho por dia com elas. 
As pessoas corajosas davam tanta atenção para as suas vontades, que elas cresciam fortes e barulhentas.

Acontecia o que devia mesmo acontecer. As vontades já não cabiam nos esconderijos. Nada mais poderia contê-las. 
Era chegado o momento. 
As vontades fechavam os olhos, contavam até três e saltavam...

E, assim, o padeiro fazia pães mais macios e apetitosos.
A costureira virava modista.
O piloto de avião virava astronauta.
A telefonista virava locutora de rádio.
O pianista tocava em uma orquestra.
A bióloga morava na Amazônia.


Sim, era uma cidade onde as vontades adoravam crescer dentro das pessoas corajosas. 

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Poder contar com um pai

Conto várias histórias no Dia dos Pais. Há uma, porém, que me toca muito, muito profundamente. Lembro-me da primeira vez que a ouvi, não podia ser melhor nem mais bela: foi contada por Giba Pedrosa, meu mestre contador de histórias. Quem conhece o Giba sabe da potência da sua voz. Sabe também da magia e da emoção que ele traz para uma história. Ele a contou pausadamente, bem baixinho, sem colocar nem uma palavra a mais ou a menos. Ao final, um silêncio. Ouvi-la causou tamanho impacto que foi como uma bomba no meu coração, uma bomba forte de coisas boas... Assim, essa ficou sendo a minha história preferida sobre pai. Saí buscando este texto. Giba havia dito que era de Eduardo Galeano. Fui encontrá-la em O livro dos abraços, no qual Galeano traz delicado tecido de suas memórias, onde seus pequenos, porém infinitos momentos vão como que nos abraçando. Esse conto vem com o sugestivo título de 

"A função da Arte/1"

Diego não conhecia o mar. 
O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. 
Viajaram para o Sul. 
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos.
E foi tanta a imensidão do mar, e tanto  o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E, quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
- Pai, me ajuda a olhar!