segunda-feira, 29 de julho de 2013

Histórias para bebês

Adorei ter participado desta matéria do Anuário do Bebê, de Caras. O cuidado da jornalista Ana Paula Andrade durante a entrevista demonstrou a delicadeza e o respeito com o ato de contar histórias. Veja o link que traz a entrevista: http://caras.uol.com.br/especial/bebe/post/contar-historias-bebe-cria-lacos-afetivos-linguagem-crianca-aprendizado#image1

A escritora Vanessa Meriqui, autora de quatro livros infantis, fala sobre sua experiência como contadora de histórias e dá dicas para os pais apresentarem a literatura para seus filhos desde a gravidez. Confira:
Quais os benefícios de ler para a criança desde cedo? Ler em voz alta, suavemente, propicia o vínculo amoroso e a memória afetiva. O contar histórias tem como matéria-prima o afeto. E quando uma criança é tratada com amor, isso a prepara para o futuro, pois uma pessoa amada tem condições de sentir-se segura e enfrentar situações difíceis, de encarar o futuro com mais coragem.. Além disso, ouvir histórias desde cedo possibilita que a criança tenha contato com um vocabulário maior, o que é bom para sua formação. E, claro, o ato de contar histórias estimula futuros leitores desde a tenra idade, o que é fantástico para a educação de nossas crianças.
Existe uma idade ideal para começar? Costumo dizer que histórias são indicadas para pessoas de 0 a 110 anos! Na verdade, uma das coisas mais ternas que uma mãe pode fazer é contar histórias para o bebê ainda na fase de gestação. Engana-se quem acha que o feto não ouve. Ele ouvirá e reconhecerá sempre aquele tom de voz, aquele carinho, aquela entrega.
Então a contação é indicada para bebês? Sim, são superindicadas, principalmente se a mãe contou histórias quando ele ainda estava no seu ventre. Pesquisas revelam que o bebê reconhece a voz da mãe desde o útero, então ele terá memória afetiva daquele momento. E será um momento muito prazeroso, de encontro, de calma. Mas se a mãe não contou histórias para seu filho enquanto estava grávida, sempre é hora de começar.
Que tipos de histórias devem ser contadas? Para um bebê pequeno, o que surte efeito é o tom de voz, então o enredo não é o mais importante. É claro que bom senso é fundamental. Histórias de suspense, por exemplo, não são recomendadas. Não faz sentido provocar sons que causem sobressaltos no bebê. Então histórias curtas, meigas, até com pequenas músicas, são recomendadas. Mas se você não tiver um livro em mãos, vale até o contar um caso, uma cena, ou acontecimentos do seu dia, sempre com palavras suaves, como se estivesse contando um conto de fadas. O que importa é o carinho com que se conta.
É preciso determinar um horário para a atividade? Associar a hora da história à hora do sono, principalmente para o bebê, é excelente, pois o acalma e o ajuda a dormir. Mas o importante é que a criança saiba que a hora da história é um momento só dela. Então, se tiver que criar uma rotina para isso, crie. Muitas vezes, em alguma situação em que a criança esteja nervosa ou chorando, uma história pode ser um bálsamo. E aí não é preciso esperar a hora – você faz a hora acontecer.
É melhor dramatizar ou ler normalmente? Ler normalmente já é interessante. Até pode-se dramatizar, dar vozes aos personagens, mas sempre com o cuidado de não provocar sobressaltos. Não grite no ouvido da criança para fazer o lobo mau, por exemplo. Com bebês, não são recomendados movimentos bruscos e vozes assustadoras, nada que cause susto. A história deve ser contada suavemente.
Vale inventar uma história colocando a prória criança como personagem? Para os bebês, não funciona muito. Mas por volta dos três anos, o recurso é válido. Nessa idade, a criança já se compreende como uma pessoa, um ser independente e gosta de se sentir inserida.
As crianças costumam interagir e mudar o rumo das histórias que você conta?
Sim, o tempo todo! Elas interferem na história e costumo acolher essas intervenções, mesmo que sejam totalmente descontextualizadas. Nesse momento, a criança expressa aquilo que mais a incomoda ou que lhe é importante. Há casos onde as crianças revelam seus medos e dúvidas na hora da história. Então, nada de gritar “me deixa terminar de contar!”. É preciso entender que muitas vezes não é a história que importa naquele momento, e sim a oportunidade da troca, do afeto.

E se a criança começar a chorar? É preciso respeitar. Nem sempre é porque ela não gostou da contadora ou da história. É porque aquele momento surtiu alguma reação. Fale com a criança com calma, e se tiver que interromper a história, interrompa.
O jeito de contar histórias muda conforme a faixa etária? Sim. Para crianças maiores, recomendo histórias que mexam com a criatividade, com o lúdico e com a interatividade. Use livros com ilustrações atraentes, grandes e coloridas, que estimulem a percepção visual. Para os bebês, recomendo utilizar narrativas curtas, rechear com canções como acalantos, inserir adereços e utilizar coisas simples, como tecidos coloridos ou objetos - como bolas. Há livros de tecidos, de plásticos ou cartonados, de fácil manuseio para os pequenos.
Qual história você escolheria para introduzir a criança no mundo da ficção? Não dá para generalizar, mas acho que toda criança deve ler e ter ouvir histórias, mitos e lendas, contos de fadas e folclore. Digo isso com muita ênfase. É preciso ler. Recomendo Andersen, Grimm, Monteiro Lobato e autores brasileiros contemporâneos. Toda criança deve ser estimulada a conhecer a biblioteca da sua escola, do seu bairro e visitar livrarias. Ler e ter a literatura em sua vida é crescer para o mundo, toda criança tem o direito de ter essa oportunidade desde bebezinho.
Na sua opinião, por que as histórias têm esse poder de encantar crianças e adultos? Desde sempre e de diferentes formas, o ser humano ouviu e contou histórias. Vivemos tempos, no entanto, em que é preciso restaurar a generosidade do ouvir e ser ouvido, do acolher e do oferecer o bálsamo das histórias. Afinal, conhecer personagens que falem à nossa alma, que nos curem, ou que enfrentem desafios para, ao final, serem felizes para sempre, é buscar a construção de um mundo mais leve. A arte de contar histórias é uma viagem que nos transforma, que nos coloca como contadores e ouvintes, como narradores e protagonistas. Esse é o objetivo do meu trabalho.
Por: Ana Paula de Andrade

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Sobre memória e avós

Hoje é dia dos avós, nossa ancestralidade mais próxima. A memória mais rica que tenho é de minha avó Santinha (o nome dela era esse mesmo, como se fosse uma pequena santa por toda a sua vida). Minha avó Santinha era uma mulher forte, dessas que traz sua mulher selvagem dentro de si sem pestanejar. Poderosa, criou 10 filhos, lavando roupa para fora, costurando, amando meu avô e ensinando seus filhos a serem pessoas boas. E também gostava de ler (foi alfabetizada pelo meu avô depois do casamento e com filhos no colo). Lia e contava histórias.  Tenho certeza de que ela gostaria da história abaixo, uma história terna, meiga e de um profundo respeito aos nossos velhos.

GUILHERME AUGUSTO ARAÚJO FERNANDES

Era uma vez um menino chamado Guilherme Augusto Araújo Fernandes e ele nem era tão velho assim.
Sua casa era ao lado de um asilo de velhos e ele conhecia todo mundo que vivia lá.
Ele gostava da senhora Silvano, que tocava piano.
Ele ouvia as histórias arrepiantes, que lhe contava o Sr. Cervantes.
Ele brincava com o Sr. Valdemar, que adorava remar.
Ajudava a senhora Mandala, que andava com uma bengala.
E admirava o Sr. Possante, que tinha voz de gigante.
Mas a pessoa que ele mais gostava era a senhora Antônia Maria Diniz Cordeiro, porque ela também tinha quatro nomes, como ele. Ele a chamava de Dona Antônia e contava-lhe todos os seus segredos.
Um dia, Guilherme Augusto escutou sua mãe e seu pai conversando sobre Dona Antônia.
- Coitada da velhinha - disse sua mãe.
- Por que ela é coitada? - perguntou Guilherme Augusto.
- Porque ela perdeu a memória - respondeu seu pai.
- Também, não é para menos – disse a mãe. - ela já tem noventa e seis anos.
- O que é memória? - perguntou Guilherme Augusto.
Ele vivia fazendo perguntas.
- É algo de que você se lembre - respondeu o pai.
Mas Guilherme Augusto queria saber mais; então, ele procurou a Sra. Silvano que tocava piano.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo quente, meu filho, algo quente.
Ele procurou o Sr. Cervantes, que lhe contava histórias arrepiantes.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo bem antigo, meu caro, algo bem antigo.
Ele procurou o Sr. Valdemar, que adorava remar.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo que o faz chorar, meu menino, algo que o faz chorar.
Ele procurou a senhora Mandala, que andava com uma bengala.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo que o faz rir, meu querido, algo que o faz rir.
Ele procurou o Sr. Possante, que tinha voz de gigante.
- O que é memória? - perguntou.
- Algo que vale ouro, meu jovem, algo que vale ouro.
Então Guilherme Augusto voltou para casa, para procurar memórias para Dona Antônia, já que ela havia perdido as suas.
Ele procurou uma antiga caixa de sapatos cheia de conchas, guardadas há muito tempo, e colocou-as com cuidado numa cesta.
Ele achou a marionete, que sempre fizera todo mundo rir, e colocou-a na cesta também.
Ele lembrou-se, com tristeza, da medalha que seu avô lhe tinha dado e colocou-a delicadamente ao lado das conchas.
Depois achou sua bola de futebol, que para ele valia ouro; por fim, entrou no galinheiro e pegou um ovo fresquinho, ainda quente, debaixo da galinha.
Aí, Guilherme Augusto foi visitar Dona Antônia e deu a ela, uma por uma, cada coisa de sua cesta.
"Que criança adorável que me traz essas coisas maravilhosas", pensou Dona Antônia.
E então ela começou a se lembrar.
Ela segurou o ovo ainda quente e contou a Guilherme Augusto sobre um ovinho azul, todo pintado, que havia encontrado uma vez, dentro de um ninho, no jardim da casa de sua tia.
Ela encostou uma das conchas em seu ouvido e lembrou da vez que tinha ido à praia de bonde, há muito tempo, e como sentira calor com suas botas de amarrar.
Ela pegou a medalha e lembrou, com tristeza, de seu irmão mais velho, que havia ido para guerra e que nunca voltou.
Ela sorriu para a marionete e lembrou da vez em que mostrara uma para sua irmãzinha, que rira às gargalhadas, com a boca cheia de mingau.
Ela jogou a bola de futebol para Guilherme Augusto e lembrou do dia em que se conheceram e de todos os segredos que haviam compartilhado.
E os dois sorriram e sorriram, pois toda a memória perdida de Dona Antônia tinha sido encontrada, por um menino que nem era tão velho assim.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Sobre passarinhos e saudades

Há algum tempo tive o privilégio de contar histórias no lançamento do livro Saudades, de Ricardo Viveiros.  Nem preciso dizer da minha emoção em contar uma história de Viveiros, ainda mais com um tema tão difícil. Foi uma experiência linda. Ricardo ficou um tantinho longe de mim, logo atrás, ouvindo minhas palavras em silêncio, enquanto eu juntava às suas palavras as minhas. Ao final, ele me abraçou e escreveu-me coisas de uma lindeza só no livro que me ofereceu.   Hoje, tive outra bela experiência, também a partir de palavras do mesmo autor: encontrei o livro O Poeta e o Passarinho, que contou com o comovente, muito comovente prefácio de Ziraldo e as delicadas ilustrações de Rubens Matuck.  De um misto de candura e dor, Viveiros novamente me ensinou o sentimento de saudades em palavras, coisa que sinto absolutamente todos os dias em pensamento. Como disse Ziraldo, em seu prefácio, “a poesia verdadeira e plena tem que vir do fundo da alma. E quando isso acontece, os versos dos poetas nos atravessam como flechas”.  Pois aqui vão  flechas de Viveiros:

O poeta e o passarinho
Era uma cidade grande, dessas em que dificilmente as pessoas se encontram. Ele vivia em um apartamento, apenas mais uma luz brilhando na imensa paisagem sempre meio escura da metrópole. O homem não era dali e, desde que chegou, tinha esperança de um dia voltar. Criava sonhos, era um poeta.
O tempo foi passando e ele foi ficando. O tempo fingia não passar e o poeta fingia não perceber.
É assim mesmo, só acontece com certas pessoas, que têm esperança, acreditam na felicidade. O poeta, admirado por todos, vivia cercado de pessoas. Mas, na verdade, era muito solitário.
Aquele burburinho ajudava a passar o tempo, sem perceber o tempo passar. Coisa de poeta que tem um sonho na cabeça e acredita na sua realização. Espera que um dia tudo que imagina seja verdade.
E foi assim que, de repente, no parapeito da janela do seu apartamento, caiu um filhote de passarinho. Pequeno, frágil, molhado.
Porque em cidade grande isso acontece, tem pouca árvore segura para se fazer um ninho. Além do que, às vezes, os pais dos passarinhos saem à procura de alimento e são capturados em armadilhas. Ainda por cima, venta e chove nas metrópoles.
O poeta acolheu o filhote de passarinho. Primeiro nas mãos, depois no coração.
Embora bonitinho, ele era bem triste. Os olhinhos sem brilho, as peninhas da cabeça eriçadas e – curioso – parecia sentir frio e medo o tempo todo.
Também pudera! O poeta, que já estava bem mais acostumado com a vida na cidade grande, às vezes também sentia tudo isso.
O tempo foi passando e o poeta continuou vivendo na metrópole, só que agora com o passarinho. Já não era solitário, porque se ocupava em imaginar o que fazer para satisfazer o verdadeiro amiguinho. Opa! Verdadeiro? É isso mesmo, o poeta sentia que esse passarinho era especial, não era um de seus poemas, só mais um sonho.
Juntos, o poeta e o passarinho foram descobrindo, emocionados, várias coisas. Boas, na maior parte das vezes, e – não tem jeito – também algumas ruins. Mas, nestes casos, o poeta tratava de fazer uma espécie de mágica, e tudo ficava bem.
E o passarinho foi mudando. Ficou mais bonito, esperto e cantava muito bem. Até as peninhas da cabeça, como os olhos, ficaram suaves, brilhantes. O passarinho havia crescido, por dentro e por fora.
O poeta, então, começou a ter um novo sonho... Incrível! Este era o maior de todos os sonhos. E você já sabe, poeta acredita que sonho pode ser realidade.
Na cabeça do poeta tudo estava bem claro, fácil de concretizar. E lá foi ele sonhando para asi mesmo e, claro, também para o passarinho. E por que não? Os dois haviam sido feitos um para o outro. Paixão igual só mesmo em poesia.
E o poeta criava o futuro! Ele e o passarinho iriam embora, vier no campo, em uma casa rodeada de árvores – afinal, passarinho e poeta adoram árvores. Lá, em harmonia, iriam cantar e, quem sabe – loucura de poeta – até construir ninhos para evitar mais passarinhos perdidos e solitários nas cidades grandes.
E criar poetas também. O mundo precisa de gente que sonha e gosta de passarinhos...
E se é sonho, que seja o maior!
Enquanto isso, o passarinho aprendia a viver e a gostar do que havia de melhor no mundo. Para o passarinho, agora a metrópole começava a ficar pequena... Seguro, conhecendo tantas novidades, com novos amigos, perninhas firmes para pular, asinhas longas para voar, o passarinho era dono do próprio bico. Parecia sabido demais...
Um dia, desses que para todo mundo sempre é igual – mas para o poeta é diferente –,  o passarinho olhou fixo nos olhos do amigo, deu um voo rápido em volta de sua cabeça e saiu pela janela. Aquela mesma onde, tempos atrás, ele havia caído por um acaso do destino.
O poeta pensou (ou sonhou de novo) que o passarinho só iria dar um passeio. E nem ficou preocupado – agora, o amiguinho já podia voar sem perigo, já conhecia tudo sobre a vida.
Mas como a vida nunca permite que a gente descubra tudo sobre ela –, uma espécie de proteção para continuar sendo o mais belo mistério da humanidade – o poeta estava errado.  E o passarinho também.
O passarinho nunca voltou. O poeta sempre esperou.