segunda-feira, 27 de maio de 2013

A prosa de Cora

Descobri, emocionada, a prosa de Cora Coralina.  Debrucei-me sobre seus livros trazidos da Casa da Ponte, que visitei em Goiás Velho, certa do reencontro sempre prazeroso com sua poesia.  Surpreendeu-me, na verdade, a sua prosa, rica, vigorosa e crítica.  Para quem já havia lido a poesia de Cora em forma de versos, foi uma grande emoção ler sua poesia sem rimas e métricas. Pois assim é a sua prosa – pura poesia.  Descobri Cora Coralina como uma contadora de histórias (“estórias, dizia ela, pois não sou historiadora e nem memorialista, conto apenas e sempre as estórias do cotidiano, as verdades e mentiras”).  Numa narrativa de puro encantamento, ela nos oferece contos e causos de sua cidade e das gentes de Goiás, coisas dos acontecidos na Casa da Ponte, onde nasceu e morreu, coisas do ser humano e de suas vidas doces ou difíceis. Cora Coralina nos conta, com delicadeza – ora  com fina ironia e até tristeza – mas sempre lindamente, as histórias de seu tempo.  No texto abaixo, um trecho de A menina, as formigas e o boi, publicado postumamente no livro O Tesouro da Casa Velha.

A menina, as formigas e o boi

     Sempre gostei de olhar carreirinha de formiga.  Seus movimentos. Suas constâncias.  Acho que aprendi muito com elas, que formiga muito ensina. Aquele vaivém continuado, aquele poder. Suas cargas pesadas, todas coletivas, intencionadas. Carregos de coisas misteriosas, fanicos, indistintos. Elas sábias, instruídas, sagazes. De menina, debruçava na terra. Olhava. Acompanhava. Criava estorvos Cacos cheios d´água, depois dava ponte. Salvava. Repunha. Malvadezas de crianças. Vezes outras trazia agrados. Punhados de farinha grossa. Espalhava no carreirinho delas. Recolhiam grã a grã. Vassouravam, levavam tudo para sua casa subterra. 
     Eu inventava coisas. Entrava com elas casa adentro. Belezas. Jardins, mesas, cadeirinhas, redinhas. Crianças formigas balançando. Brincando de roda, cantando “senhora dona Sancha”. Eu com elas.
     Em casa misturava essas coisas. Contava. Afirmava. Tinha entrado na casinha delas. Os vistos. Recontava. Jurava. Minhas irmãs gritavam. Mãieeee... Aninha já vem com a inzonas dela... Vem vê ela... Mãe vinha altaneira. Ralhava forte. Me fazia calar. Tinha medo. Fosse tara, um ramo de loucura, eu sendo filha de velho doente.
     ... (As formigas encontram a perna de um boi e a levaram para o formigueiro) ... Perdi o prazo das horas. Pensei ajudar. Botar na entrada. Desisti. Deixei tudo por conta delas. Ficar ali de fiscal, curiosa no que se ia dar. Mãe chamou lá em casa. Surdei. Mãe não tornou a chamar. Decerto chegou visita....Introduziram tudo. Deram jeito, diligentes formiguinhas... Eu olhando, boba. Aprendendo, que formiga muito ensina. Mestras. Um boi para elas, povinho miúdo de Deus, diligente, influído, achado no carreador, particular delas. 


segunda-feira, 20 de maio de 2013

Sobre Aninha e Cora


Estou voltando de terras do Goiás. Mais precisamente da cidade de Goiaz (assim mesmo na grafia antiga), onde nasceu primeiramente Aninha e, mais tarde, Cora Coralina, nome escolhido por Aninha para autonomear-se e incorporar a sua vontade infinita de se libertar, de escrever e brilhar para o mundo com seus escritos e ideais. Fica difícil falar da emoção que senti na Casa da Ponte, hoje convertida em “Casa de Cora Coralina”. Em que pese toda a infraestrutura do museu,  senti realmente que a casa onde nasceu - e para onde Cora voltou após 45 anos longe de Goiás - traz uma magia e emoção inexplicáveis (pelo menos para mim, que me emociono com tudo que se refere à Cora). Andar por cômodos onde seus poemas nasceram, visitar a cozinha da doceira maravilhosa que ela foi, imaginar sua vida naquele espaço tão pequeno para a inquietude e imensidão de emoções sentidas por uma mulher tão à frente do seu tempo, foi algo muito especial para mim. 
Cora Coralina foi uma mulher que, aos 14 anos, decidiu trocar de nome, começar a escrever e montar um jornal feminista, tudo isso no início dos anos de 1900, ainda no seio de uma família extremamente conservadora, vivendo em uma cidade imperial e refém de uma sociedade feroz e patriarcal. Cora foi discriminada, primeiro por ser uma criança diferente, depois por ser uma adolescente, como diriam, de maus modos e pouco casadoira, mais tarde banida da família e da cidade por causa de um amor não aprovado.  Na vida fugidia, teve vários filhos e, quando conseguiu casar-se com o pai de seus filhos, ele morreu. Cora não desistiu, trabalhou intensamente, criou filhos e escreveu. Voltou e escreveu, envelheceu e escreveu. Vida constituída de dificuldades, desaprovações, solidão e luta.  A vida não lhe foi fácil.
Generosa e solidária, Cora Coralina traz em seus poemas a compreensão da vida, a percepção e a identificação com os desvalidos e desaprovados como seus iguais. Densa, forte, universal, feminina e ancestral. Essa é Cora Coralina, nesse poema de arrepiar.

Mulher da roça eu o sou.
Mulher operária, doceira,
Abelha em seu artesanato,
Boa cozinheira, boa lavadeira.
A gleba me transfigura, sou semente, sou pedra.
Pela minha voz cantam todos os pássaros do mundo.
Sou a cigarra cantadeira de um longo estio que se chama Vida.
Sou a formiga incansável, diligente, compondo seus abastos.
Em mim, a planta renasce e floresce, sementeia e sobrevive.
Sou a espiga e o grão fecundo que retornam à terra.
Eu sou o velho paiol e a velha tulha roceira.
Eu sou a terra milenária, eu venho de milênios.
Eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e fecundada
no ventre escuro da terra.