segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Amigos


Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade. 
Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta. 
Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria. 
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. 
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. 
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos. 
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, 
mas lutam para que a fantasia não desapareça. 
Não quero amigos adultos, nem chatos. 
Quero-os metade infância e outra metade velhice. 
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto, 
e velhos, para que nunca tenham pressa. 
( Fernando Pessoa )

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Cinderelo, por quê não?

Por conta de um novo repertório, estou lendo histórias com novos focos, ao contrário, escritas sob outros pontos de vista... E tenho encontrado coisas muito boas! Aqui vai um exemplo interessante, um livro de Babette Cole, "O Príncipe Cinderelo". Espero que gostem !


Príncipe Cinderelo

O Príncipe Cinderelo nem parecia príncipe. Era baixinho, sardento, magricela e andava molambento. O Príncipe tinha três irmãos enormes, muito peludos, que viviam caçoando do jeito dele. Eles iam sempre à discoteca do palácio com namoradas princesas. E faziam o pobre Cinderelo ficar em casa, limpando o que eles sujavam.
Quando terminava o trabalho, o Príncipe sentava perto do fogo e sonhava em ser enorme e peludo como os irmãos. Um sábado à noite, quando ele estava lavando as meias, ma fada muito sujinha caiu pela chaminé.
Então, ela fez um feitiço para que o Príncipe pegasse o carro e fosse à discoteca. Mas os encantamentos não deram muito certo. Quando ela fez o encantamento para o carro, apareceu um carrinho de brinquedo. Quando ela fez o encantamento para uma roupa de baile, ela virou uma roupa de banho. E quando ela fez o encantamento para que ele fosse “enorme e peludo”, como os irmãos... ele virou um macaco, praticamente um monstro desses de desenho animado, enorme, peludo, vestindo um maiô listrado de banho! “Ratos de mordam”, disse a fada atrapalhada, “deu tudo errado de novo! Mas eu tenho certeza de que tudo vai se acabar à meia-noite”.
Mas, por causa do encantamento, o Príncipe Cinderelo não sabia que tinha virado um macaco enorme e peludo. Ele achava que estava muito bonito! E assim, lá se foi o Príncipe para a discoteca do palácio. Mas quando chegou na Balada Real, percebeu que era grande demais para passar na porta. Resolveu, então, tomar um ônibus para voltar para casa, já que aquele carrinho era muito pequeno.
Acontece que havia uma bela princesa estava esperando no ponto. “Quando passa o próximo ônibus?”, ele gruniu.
A princesa tomou tamanho susto com o monstro ao seu lado, que deu um grito enorme, fechando os olhos assustada. Por sorte, bateu meia-noite e o Príncipe Cinderelo voltou a se transformar nele mesmo. A princesa então abriu os olhos devagar e viu o rapaz magrelo e achou que ele havia afugentado o monstro peludo para salvá-la.
“Espere”, ela gritou. Mas o Príncipe Cinderelo era muito tímido. Saiu correndo e perdeu a calça!
A princesa era justamente a bela e rica Princesa Belarrica. Ela mandou anunciar que estava à procurado dono daquela calça. E prometeu se casar com aquele que conseguisse vestir a calça perdida pelo príncipe que a salvou de ser devorada de um enorme e peludo macaco. Todos os príncipes da redondeza tentaram vestir a calça. Mas ela se retorcia e se recusava a entrar em cada um deles. É claro que os três irmãos do Cinderelo tentaram vestir a calça... e nada.
“Deixe-o tentar”, ordenou a princesa, apontando para Cinderelo. ”Imagina se a calça vai sevir nesse moleque atrevido”, disseram os irmãos. ... mas serviu!. E a princesa Belarrica o pediu em casamento. Assim, o príncipe Cinderelo se casou com a princesa e viveu feliz para sempre. E quanto a seus irmãos? Ah, esses, depois de uma conversinha da princesa com aquela mesma fada, que os tranformou em fadas domésticas, que saíram limpando o palácio para sempre.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Mushkil Gusha - uma história iraniana


Esta é a história de Mushkil Gusha, que ganhei de meu amigo Bruno numa tarde de quinta-feira. A história fala em tâmaras, mas ele comeu uvas passas e presenteou-me com lindos e saborosos damascos, junto com este maravilhoso texto.  “É uma história iraniana muito antiga, que trata do compromisso com a coisa certa e de como é fácil esquecermos nossos valores, cair em tentação, nos desvirtuarmos”, me explicou Bruno. Meu amigo tinha toda razão e vocês entenderão o por quê. Sei que vão gostar.
  
A História de Mushkil Gusha

Era uma vez, a menos de mil milhas daqui, um pobre lenhador viúvo, que vivia com sua pequena filha. Todos os dias costumava ir às montanhas cortar lenha, que levava para casa e atavaem feixes. Depois da primeira refeição, caminhava até o povoado mais próximo, onde vendia a lenha e descansava um pouco antes de voltar para casa. Um dia, ao chegar em casa, já muito tarde, a menina lhe disse:
- Pai, de vez em quando gostaria de ter uma comida melhor, em maior quantidade e mais variada.
- Está bem, minha filha - disse o velho -, amanhã levantarei mais cedo do que de costume, irei mais alto nas montanhas, onde há mais lenha, e trarei uma quantidade maior do que a habitual. Voltarei mais cedo para casa, atarei os feixes mais depressa e irei logo ao povoado vendê-los para conseguirmos mais dinheiro. E lhe trarei uma porção de coisas deliciosas.

Na manhã seguinte, o lenhador levantou-se antes da aurora e partiu para as montanhas. Trabalhou arduamente cortando lenha e fez um feixe enorme, que carregou nos ombros até sua casa. Ao chegar era ainda muito cedo. Então, colocou a carga no chão e bateu à porta, dizendo:
 - Filha, filha, abra a porta. Estou com sede e fome; preciso comer alguma coisa antes de ir para o mercado.
 Mas a porta continuou fechada. O lenhador estava tão cansado que se deitou no chão, ao lado do feixe de lenha, e logo adormeceu. A menina, esquecida da conversa da noite anterior, dormia profundamente. Quando o lenhador acordou, algumas horas depois, o sol já estava alto. Bateu novamente à porta e disse:
 - Filha, filha, abra logo. Preciso comer alguma coisa antes de ir ao mercado vender a lenha, pois já é muito mais tarde do que de costume.
 Mas a menina que tinha esquecido completamente a conversa da noite anterior, tinha se levantado, arrumado a casa e safra para dar um passeio. Em seu esquecimento, e supondo que o pai já tivesse ido para o povoado, deixou a porta da casa fechada. Assim, o lenhador disse a si mesmo:
 - Já é muito tarde para ir à cidade. Voltarei para as montanhas e cortarei outro feixe de lenha, que trarei para casa, e amanhã terei carga em dobro para levar ao mercado.
 O lenhador trabalhou duro aquele dia, cortando e enfeixando lenha nas montanhas. Já era noite quando chegou em casa com a lenha nos ombros.
 Pôs o feixe atrás da casa, bateu à porta e disse:
 - Filha, filha, abra a porta. Estou cansado e não comi nada o dia todo. Trago uma dupla carga de lenha, que espero levar ao mercado amanhã. Preciso dormir bem esta noite para recuperar minhas forças.
 Mas não houve resposta, pois a menina, sentindo muito sono ao voltar do passeio, preparou sua comida e foi para a cama. A princípio, ficara preocupada com a ausência do pai, mas tranqüilizou-se logo, pensando que ele passaria a noite no povoado.
 Cansado, faminto e com sede, vendo que não podia entrar em casa, o lenhador deitou-se novamente ao lado da lenha. Apesar de preocupado com o que poderia estar acontecendo com a filha, não conseguiu ficar acordado: adormeceu logo. Mas, como estava com muito frio, muita fome e muito cansado, acordou bem cedo na manhã seguinte, antes mesmo de o dia clarear. Sentou-se, olhou ao redor, mas não conseguiu ver nada. Mas, nesse momento, aconteceu uma coisa estranha. Pareceu-lhe ouvir uma voz que dizia:
 - Depressa! depressa! Deixa tua lenha e vem por aqui. Se necessitas muito e desejas o suficiente, terás uma refeição deliciosa.
O lenhador levantou-se e caminhou na direção de onde vinha a voz. Andou, andou, mas não encontrou nada. Então sentiu mais cansaço, frio e fome do que antes e, além do mais, estava perdido. Tivera muitas esperanças, mas isso não parecia tê-lo ajudado. Ficou triste, com vontade de chorar, mas percebeu que chorar também não o ajudaria. Assim, deitou-se e adormeceu. Logo depois acordou novamente. Sentia frio e fome demais para poder dormir. Foi então que lhe ocorreu narrar a si mesmo, como se fosse um conto, tudo o que tinha acontecido desde que a filha lhe pedira um tipo de comida diferente.

Mal terminou sua história, pareceu-lhe ouvir outra voz, vinda de algum lugar no alto, como se saísse do amanhecer, que dizia:
 - Velho homem, velho homem, que fazes sentado aqui?
 - Estou me contando minha própria história - respondeu o lenhador.
- E qual é?
O lenhador repetiu sua narração.
- Muito bem - disse a voz, e a seguir lhe pediu que fechasse os olhos e subisse um degrau.
- Mas não vejo degrau algum - disse o velho.
- Não importa, faz o que te digo - ordenou a voz.
O homem fez o que lhe fora ordenado. Mal fechou os olhos, descobriu que estava de pé e, levantando o pé direito, sentiu que debaixo dele havia algo semelhante a um degrau. Começou a subir o que parecia ser uma escada. De repente os degraus começaram a mover-se - moviam-se muito rapidamente - e a voz lhe disse:
- Não abra os olhos até que eu ordene.
Não se passara muito tempo, quando a voz mandou que o velho abrisse os olhos. Ao fazê-lo, o lenhador achou-se num lugar que parecia um deserto, com um sol escaldante acima dele. Estava rodeado de montes e montes de pedrinhas de todas as cores: vermelhas, verdes, azuis, brancas. Mas parecia estar só; olhou em volta e não conseguiu ver ninguém. Então, a voz começou a falar de novo:
- Apanha todas as pedras que puderes, fecha os olhos e desce os degraus.
O lenhador fez o que lhe mandavam e, quando a voz ordenou que abrisse os olhos novamente, encontrou-se diante da porta de sua própria casa. Bateu à porta, e a sua filha veio atender. Ela lhe perguntou por onde ele tinha andado, e o pai lhe contou o ocorrido, embora a menina mal entendesse o que ele dizia, porque tudo lhe parecia muito confuso.
Entraram em casa e a menina e o seu pai repartiram a última coisa que lhes restava para comer: um punhado de tâmaras secas. Quando terminaram a comida, o velho achou que estava novamente ouvindo uma voz, uma voz igual àquela que o mandara subir os degraus.
- Embora ainda não o saibas - disse a voz - foste salvo por Mushkil Gusha. Lembra-te: Mushkil Gusha está sempre aqui. Promete a ti mesmo que todas as quintas-feiras, à noite, comerás umas tâmaras e darás outras a alguma pessoa necessitada, a quem contarás a história de Mushkil Gusha. Ou darás um presente, em seu nome, a alguém que ajude os necessitados. Promete que a história de Mushkil Gusha nunca será esquecida. Se fizeres isso, e o mesmo fizerem as pessoas a quem contares a história, os que tiverem verdadeira necessidade sempre encontrarão seu caminho.

O lenhador então colocou todas as pedras que havia trazido do deserto num canto do casebre. Pareciam simples pedras e ele não soube o que fazer com elas. No dia seguinte, levou seus dois enormes feixes de lenha ao mercado e os vendeu facilmente, por ótimo preço. Ao voltar para casa, levava para sua filha uma porção de iguarias deliciosas que ela jamais havia provado antes. Quando terminaram de comer, o velho lenhador disse:
 - Agora vou lhe contar a história de Mushkil Gusha. Mushkil Gusha significa "O dissipador de todas as dificuldades". Nossas dificuldades desapareceram por intermédio de Mushkil Gusha e devemos lembrá-lo sempre.
 Durante uma semana o homem seguiu sua rotina. Ia às montanhas, trazia lenha, comia alguma coisa, levava a lenha ao mercado e a vendia. Sempre encontrava comprador, sem dificuldade.

Mas chegou a quinta-feira seguinte e, como é comum entre os homens, o lenhador se esqueceu de contar a história de Mushkil Gusha. Nessa noite, já tarde, apagou-se o fogo na casa dos vizinhos. E, como não tinham com que voltar a acendê-lo, foram à casa do lenhador e disseram:
 - Vizinho, vizinho, por favor, dê-nos um pouco de fogo dessas suas lâmpadas maravilhosas que vemos brilhar através da janela.
 - Que lâmpadas? - perguntou o lenhador.
- Venha cá e veja - responderam.
O lenhador saiu e viu claramente a variedade de luzes que, vindas de dentro, brilhavam através de sua janela. Entrou e viu que a luz saía do monte de pedras que havia posto num canto. Mas os raios de luz eram frios e era impossível usá-los para acender fogo. Então, tornou a sair e disse:
- Sinto muito, vizinhos, não tenho fogo - e bateu-lhes a porta no nariz.
Os vizinhos ficaram aborrecidos e surpresos e voltaram para casa resmungando. E aqui eles abandonam nossa história. Rapidamente, o lenhador e sua filha, com medo que alguém visse o tesouro que possuíam, cobriram as brilhantes luzes com todos os trapos que encontraram. Na manhã seguinte, ao destampar as pedras, descobriram que eram gemas luminosas e preciosas.
 Uma a uma, levaram-nas às cidades dos arredores, onde as venderam por um preço enorme. Então, o lenhador decidiu construir um esplêndido palácio para ele e sua filha. Escolheram um lugar que ficava exatamente na frente do castelo do rei de seu país. Pouco tempo depois, um edifício maravilhoso estava construído.

 O rei tinha uma filha muito bonita que uma manhã, ao acordar, viu o castelo, que parecia de contos de fadas, bem em frente ao de seu pai. Muito surpresa, perguntou a seus criados:
 - Quem construiu esse castelo? Com que direito fazem uma coisa dessas tão perto do nosso lar?
 Os criados saíram e investigaram. Ao regressar, contaram à princesa tudo o que conseguiram saber. A princesa, muito zangada, mandou chamar a filha do lenhador. Porém, quando as duas meninas se conheceram e se falaram, logo tornaram-se boas amigas. Encontravam-se todos os dias e iam nadar e brincar juntas num regato que o rei mandara fazer para a princesa.  Alguns dias depois do primeiro encontro, a princesa tirou um colar lindo e valioso e pendurou-o numa árvore à beira do regato. Na volta, esqueceu-se de apanhá-lo e, ao chegar em casa, pensou que o tinha perdido. Refletindo melhor, porém. concluiu que tinha sido roubado pela filha do lenhador. Contou tudo ao pai, que mandou prender o lenhador e confiscou-lhe todos os bens. O homem foi posto na prisão, e sua filha levada para um orfanato. Como era costume no país, depois de algum tempo o lenhador foi retirado de sua cela e levado para praça pública, onde o acorrentaram a um poste, tendo pendurado ao pescoço um cartaz onde se lia:
 "E isto que acontece a quem rouba dos reis."
 A princípio, as pessoas juntavam-se à sua volta zombando dele e atirando-lhe coisas. O lenhador estava muito infeliz. Porém, como é comum entre os homens, logo se acostumaram com o velho sentado junto ao poste e lhe prestavam cada vez menos atenção. Às vezes lhe atiravam restos de comida, às vezes nem mesmo isso.
 Uma tarde, ouviu alguém dizer que era quinta-feira. De imediato veio-lhe à mente o pensamento de que logo seria a noite de Mushkil Gusha, "O dissipador de todas as dificuldades", a quem há tanto tempo se esquecera de comemorar. No mesmo instante em que esse pensamento lhe chegou à mente, um homem caridoso que passava jogou-lhe uma moeda.
 - Generoso amigo - chamou-o o lenhador - você me deu dinheiro que para mim não tem utilidade alguma. Mas se, em sua generosidade, puder comprar uma ou duas tâmaras e vir sentar-se comigo para comê-las, eu lhe ficaria eternamente grato.
 O homem saiu e comprou algumas tâmaras, sentou-se a seu lado e comeram juntos. Ao terminar, o lenhador contou-lhe a história de Mushkil Gusha.
 - Acho que você deve estar louco - disse-lhe o homem generoso.
 Mas era uma pessoa compreensiva e também enfrentava muitas dificuldades. Ao chegar em casa, depois desse incidente, percebeu que todos os seus problemas estavam resolvidos. Isto o fez pensar mais seriamente a respeito de Mushkil Gusha. Mas aqui ele deixa nossa história.  No dia seguinte, pela manhã, a princesa voltou ao lugar onde se banhara e, quando ia entrar na água, viu, no fundo do regato, uma coisa que parecia ser seu colar. Porém, no momento em que ia pegá-lo, espirrou, jogou a cabeça para trás, e viu que o que tomara por seu colar era apenas o reflexo dele na água. O colar estava pendurado no galho de uma árvore, no mesmo lugar onde o tinha deixado há muito tempo. Emocionada, apanhou-o e foi correndo contar ao rei o acontecido. Este ordenou que o lenhador fosse posto em liberdade e que lhe pedissem desculpas em público. Tiraram a menina do orfanato e todos viveram felizes para sempre.


É por causa de Mushkil Gusha que esta história, em qualquer de suas formas, é lembrada por alguém, em algum lugar do mundo, dia e noite, onde quer que exista gente. Tal como sempre tem sido contada, assim continuará a ser contada eternamente. Você quer repetir essa história nas noites de quinta-feira e ajudar, assim, o trabalho de Mushkil Gusha?

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Tempo de Escolhas



Não me canso desta história. Me toca profundamente. Já li e a contei muitas e muitas vezes. A reflexão é sobre o desafio diário das escolhas. Muitas vezes, elas pesam demais, tornando nossos passos infinitamente difíceis. Por isso adoro essa história de Marina Colasanti, chamada "As Notícias e o Mel". Que maravilhosa escolha a desse rei... E que bom saber que, às vezes, podemos ter a condição de fazer opções em nossas vidas.


As Notícias e o Mel

Um dia o rei ficou surdo. Não como uma porta, mas como uma janela de dois batentes.  Ouvia tudo do lado esquerdo. Do lado direito, não ouvia nada. A situação era incômoda, Só atendia aos ministros que sentavam de um lado do trono. Aos outros, nem respondia. E até mesmo de manhã, se o galo cantasse do lado errado, Sua Majestade não acordava e passava o dia inteiro dormindo.
Foi quando mandou chamar o gnomo da floresta. E o gnomo, obediente, apareceu na corte. Veio voando, com suas asinhas. Tão pequeno que, embora todos avisados de sua chegada, quase o confundiram com um inseto qualquer.
Chegou e logo se entendeu com o rei, estabelecendo um trato.  Ficaria morando no ouvido direito e repetiria para dentro – e bem alto – tudo o que ouvisse lá de fora. Tendo asas, e desejando, poderia aproveitar seu parentesco com as abelhas para fabricar no ouvido real alguma cera e um pouco de mel. O trato funcionou às mil maravilhas. Tudo o que o gnomo ouvia, repetia em voz bem alta nas cavernas da orelha, e o eco e a voz do gnomo chegavam até o rei, que passou a entender como antigamente, de lado a lado.
Correu o tempo. Rei e gnomo, assim tão vizinhos, foram ficando cada dia mais íntimos. Um já sabia tudo do outro e era com prazer que o gnomo gritava e era com prazer que o rei ouvia o zumbidinho das asas atarefadas no fabrico da cera e do mel. Uma certa doçura começou a espalhar-se do ouvido real para a cabeça e o rei foi ficando, aos poucos, mais bondoso.
Foi essa a causa da primeira mentira.
O Primeiro Ministro deu uma má notícia no ouvido esquerdo e o gnomo, não querendo entristecer o rei, transmitiu uma boa notícia no ouvido direito.
Foi essa a primeira vez que o rei ouviu duas notícias ao mesmo tempo. Foi essa a primeira vez que o rei escolheu a notícia melhor ...
Houve outras depois.
Sempre que alguma coisa ruim era dita ao rei, o gnomo a transformava em alguma coisa boa. E sempre que o rei ouvia duas notícias, escolhia a melhor delas.
Aos poucos, o rei foi deixando de prestar atenção naquilo que lhe chegava do lado esquerdo, E até mesmo de manhã, se o galo cantasse desse lado e o gnomo não repetisse o canto do galo, Sua Majestade esquecia-se de ouvir e continuava dormindo tranqüilo até ser despertado pelo chamado do amigo.
De um lado o mel escorria. Do outro, chegavam as preocupações, as tristezas, e todos os ventos maus pareciam soprar à esquerda de sua cabeça.
Mas o rei tinha provado o mel e a doçura era agora mais importante do que qualquer notícia. Entregou o trono e a coroa para o Primeiro Ministro. Depois chamou o gnomo para junto da boca e murmurou-lhe baixinho a ordem.
Obediente, o gnomo voou para o lado esquerdo e, aproveitando seu parentesco com as abelhas, fabricou algum mel e abundante cera, com a qual tapou para sempre o ouvido do rei.