domingo, 25 de setembro de 2011

Historinha ao contrário

Que bom seria se pudéssemos jogar tudo para o alto e só fazer coisas gostosas.  Pois a história abaixo, do livro “Sete Histórias pra Contar”, de Adriana Falcão, nos dá a chance de sonhar com esse momento.

Historinha ao Contrário

Esta é uma história de pai e mãe.
Por que todo pai, coitado, tem que ter cara de pai, tem que usar roupa de pai, tem que dizer frases de pai, tem que fazer tudo de pai, mesmo que esteja com vontade de raspar a panela de brigadeiro?
E por que mãe tem que ser mãe o dia inteiro sem parar, para lá e para cá, toc, toc, com aqueles sapatos de mãe, mesmo que esteja a fim de dar uma cambalhota?
Ah, não!
Um dia, um pai e uma mãe resolveram fazer tudo ao contrário.
O pai fechou o jornal, a mãe abriu um sorriso e lá se foram os dois, pulando de um pé só, tomar banho de chuva.
Dançaram que nem dois doidos na praça.
Jogaram muitas pedras nas poças.
Cataram 189 conchas na praia, sendo que 52 estavam esburacadas, 27 eram bastante simpáticas, 18 eram bem bonitas e uma era linda de guardar!
Fizeram castelos na areia enquanto argumentavam com as ondas que esse negócio de derrubar castelo dos outros é uma falta de educação bem molhada.
Comeram rosquinhas e estouraram os sacos.
Contaram os carros que passavam: 876, 877, 879 e perderam a conta.
Discordaram do Sol quando ele começou a se esconder do dia. Em seguida, porém, concordaram que azul-escuro pode ser tão bonito quanto azul-celeste, ainda mais quando aparece uma Lua no meio.
Procuraram, em vão, discos voadores e estrelas cadentes. Só viram mesmo uma andorinha, a quem fizeram um pedido, mas era segredo.
Acharam graça de tudo.
Acharam graça de nada.
Perderam a hora.
Voltaram caminhando só pelos desenhos pretos da calçada.
Apostaram corrida até a esquina e ela ganhou (ou talvez ele tenha deixado que ela ganhasse).
Chegaram em casa felizes, suados, sujos e cansados. Para espanto dos três filhos, que estavam esperando na janela e que logo perguntaram: Vocês podem explicar o que aconteceu???
Como eles não sabiam explicar, pediram uma licencinha e foram para a cozinha comer cachorro-quente, com muita mostarda, maionese e ketchup.
Fizeram uma bagunça danada na cozinha e nem limparam ...

sábado, 17 de setembro de 2011

A dor azul

“Há dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu...” Penso que Chico Buarque estava iluminado quando escreveu isso. E, na minha opinião, Adriana Falcão estava igualmente iluminada quando escreveu uma história que fala de uma dorzinha na alma, difícil de explicar. Uma história tão delicada quanto colorida, que conto abaixo:

A Dor Azul

A menina sentia uma dor azul todos os dias, ali pelas cinco horas da tarde. Não era uma dor grandona, de puxar o choro para fora. Era só uma dorzinha. Mas era uma bem azulona.  Achavam que era maluquice. “Dor não tem cor!”

Mas como a dor azul não passava, começaram a achar que ela doía mesmo. Levaram a menina para todos os médicos do mundo, fizeram todos os exames que existiam, e ninguém descobriu o que era aquilo. Procuraram então um psicólogo e, é claro, que ele achou que aquilo era psicológico. A dor azul não queria saber. Ia e vinha. Sempre na mesma hora.

Os anos foram passando e o azul da dor continuava colorindo as tardes da menina. Só as tardes. De manhã, ela sentia uma saudade lilás. E, à noite, um desejo prata que ela não sabia bem de quê. A menina cresceu. E um dia conheceu um rapaz que sentia uma vontade violeta de espirrar nas manhãs nubladas.

Eles se gostaram, um gostar laranja que foi se avermelhando sem parar, até que se casaram, numa noite dourada de alegria, cheia de luzinhas roxas de paixão.
Um ano depois, numa madrugada de cheiros cor-de-rosa, ela teve uma filhinha. E nunca ela tinha sentido um carinho tão verde em toda sua vida.

A filha da menina cresceu, herdou a vontade violeta de espirrar do pai e, da mãe, o desejo prateado.
E a menina, que já era mulher, descobriu que o nome da dor azul, como está do dicionário, é desassossego.
E que esse desassossego queria dizer, mais ou menos, em palavras de adultos “Como será que vai ser a minha vida?”. Puro desassossego...

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A história de Mushkil Gusha

Esta é a história de Mushkil Gusha, que ganhei de meu amigo Bruno numa tarde de quinta-feira. A história fala em tâmaras, mas ele comeu uvas passas e presenteou-me com lindos e saborosos damascos, junto com este maravilhoso texto.  “É uma história iraniana muito antiga, que trata do compromisso com a coisa certa e de como é fácil esquecermos nossos valores, cair em tentação, nos desvirtuarmos”, me explicou Bruno. Meu amigo tinha toda razão e vocês entenderão o por quê. Sei que vão gostar.
  
A História de Mushkil Gusha

Era uma vez, a menos de mil milhas daqui, um pobre lenhador viúvo, que vivia com sua pequena filha. Todos os dias costumava ir às montanhas cortar lenha, que levava para casa e atava em feixes. Depois da primeira refeição, caminhava até o povoado mais próximo, onde vendia a lenha e descansava um pouco antes de voltar para casa. Um dia, ao chegar em casa, já muito tarde, a menina lhe disse:
- Pai, de vez em quando gostaria de ter uma comida melhor, em maior quantidade e mais variada.
- Está bem, minha filha - disse o velho -, amanhã levantarei mais cedo do que de costume, irei mais alto nas montanhas, onde há mais lenha, e trarei uma quantidade maior do que a habitual. Voltarei mais cedo para casa, atarei os feixes mais depressa e irei logo ao povoado vendê-los para conseguirmos mais dinheiro. E lhe trarei uma porção de coisas deliciosas.

Na manhã seguinte, o lenhador levantou-se antes da aurora e partiu para as montanhas. Trabalhou arduamente cortando lenha e fez um feixe enorme, que carregou nos ombros até sua casa. Ao chegar era ainda muito cedo. Então, colocou a carga no chão e bateu à porta, dizendo:
 - Filha, filha, abra a porta. Estou com sede e fome; preciso comer alguma coisa antes de ir para o mercado.
 Mas a porta continuou fechada. O lenhador estava tão cansado que se deitou no chão, ao lado do feixe de lenha, e logo adormeceu. A menina, esquecida da conversa da noite anterior, dormia profundamente. Quando o lenhador acordou, algumas horas depois, o sol já estava alto. Bateu novamente à porta e disse:
 - Filha, filha, abra logo. Preciso comer alguma coisa antes de ir ao mercado vender a lenha, pois já é muito mais tarde do que de costume.
 Mas a menina que tinha esquecido completamente a conversa da noite anterior, tinha se levantado, arrumado a casa e safra para dar um passeio. Em seu esquecimento, e supondo que o pai já tivesse ido para o povoado, deixou a porta da casa fechada. Assim, o lenhador disse a si mesmo:
 - Já é muito tarde para ir à cidade. Voltarei para as montanhas e cortarei outro feixe de lenha, que trarei para casa, e amanhã terei carga em dobro para levar ao mercado.
 O lenhador trabalhou duro aquele dia, cortando e enfeixando lenha nas montanhas. Já era noite quando chegou em casa com a lenha nos ombros.
 Pôs o feixe atrás da casa, bateu à porta e disse:
 - Filha, filha, abra a porta. Estou cansado e não comi nada o dia todo. Trago uma dupla carga de lenha, que espero levar ao mercado amanhã. Preciso dormir bem esta noite para recuperar minhas forças.
 Mas não houve resposta, pois a menina, sentindo muito sono ao voltar do passeio, preparou sua comida e foi para a cama. A princípio, ficara preocupada com a ausência do pai, mas tranqüilizou-se logo, pensando que ele passaria a noite no povoado.
 Cansado, faminto e com sede, vendo que não podia entrar em casa, o lenhador deitou-se novamente ao lado da lenha. Apesar de preocupado com o que poderia estar acontecendo com a filha, não conseguiu ficar acordado: adormeceu logo. Mas, como estava com muito frio, muita fome e muito cansado, acordou bem cedo na manhã seguinte, antes mesmo de o dia clarear. Sentou-se, olhou ao redor, mas não conseguiu ver nada. Mas, nesse momento, aconteceu uma coisa estranha. Pareceu-lhe ouvir uma voz que dizia:
 - Depressa! depressa! Deixa tua lenha e vem por aqui. Se necessitas muito e desejas o suficiente, terás uma refeição deliciosa.
O lenhador levantou-se e caminhou na direção de onde vinha a voz. Andou, andou, mas não encontrou nada. Então sentiu mais cansaço, frio e fome do que antes e, além do mais, estava perdido. Tivera muitas esperanças, mas isso não parecia tê-lo ajudado. Ficou triste, com vontade de chorar, mas percebeu que chorar também não o ajudaria. Assim, deitou-se e adormeceu. Logo depois acordou novamente. Sentia frio e fome demais para poder dormir. Foi então que lhe ocorreu narrar a si mesmo, como se fosse um conto, tudo o que tinha acontecido desde que a filha lhe pedira um tipo de comida diferente.

Mal terminou sua história, pareceu-lhe ouvir outra voz, vinda de algum lugar no alto, como se saísse do amanhecer, que dizia:
 - Velho homem, velho homem, que fazes sentado aqui?
 - Estou me contando minha própria história - respondeu o lenhador.
- E qual é?
O lenhador repetiu sua narração.
- Muito bem - disse a voz, e a seguir lhe pediu que fechasse os olhos e subisse um degrau.
- Mas não vejo degrau algum - disse o velho.
- Não importa, faz o que te digo - ordenou a voz.
O homem fez o que lhe fora ordenado. Mal fechou os olhos, descobriu que estava de pé e, levantando o pé direito, sentiu que debaixo dele havia algo semelhante a um degrau. Começou a subir o que parecia ser uma escada. De repente os degraus começaram a mover-se - moviam-se muito rapidamente - e a voz lhe disse:
- Não abra os olhos até que eu ordene.
Não se passara muito tempo, quando a voz mandou que o velho abrisse os olhos. Ao fazê-lo, o lenhador achou-se num lugar que parecia um deserto, com um sol escaldante acima dele. Estava rodeado de montes e montes de pedrinhas de todas as cores: vermelhas, verdes, azuis, brancas. Mas parecia estar só; olhou em volta e não conseguiu ver ninguém. Então, a voz começou a falar de novo:
- Apanha todas as pedras que puderes, fecha os olhos e desce os degraus.
O lenhador fez o que lhe mandavam e, quando a voz ordenou que abrisse os olhos novamente, encontrou-se diante da porta de sua própria casa. Bateu à porta, e a sua filha veio atender. Ela lhe perguntou por onde ele tinha andado, e o pai lhe contou o ocorrido, embora a menina mal entendesse o que ele dizia, porque tudo lhe parecia muito confuso.
Entraram em casa e a menina e o seu pai repartiram a última coisa que lhes restava para comer: um punhado de tâmaras secas. Quando terminaram a comida, o velho achou que estava novamente ouvindo uma voz, uma voz igual àquela que o mandara subir os degraus.
- Embora ainda não o saibas - disse a voz - foste salvo por Mushkil Gusha. Lembra-te: Mushkil Gusha está sempre aqui. Promete a ti mesmo que todas as quintas-feiras, à noite, comerás umas tâmaras e darás outras a alguma pessoa necessitada, a quem contarás a história de Mushkil Gusha. Ou darás um presente, em seu nome, a alguém que ajude os necessitados. Promete que a história de Mushkil Gusha nunca será esquecida. Se fizeres isso, e o mesmo fizerem as pessoas a quem contares a história, os que tiverem verdadeira necessidade sempre encontrarão seu caminho.

O lenhador então colocou todas as pedras que havia trazido do deserto num canto do casebre. Pareciam simples pedras e ele não soube o que fazer com elas. No dia seguinte, levou seus dois enormes feixes de lenha ao mercado e os vendeu facilmente, por ótimo preço. Ao voltar para casa, levava para sua filha uma porção de iguarias deliciosas que ela jamais havia provado antes. Quando terminaram de comer, o velho lenhador disse:
 - Agora vou lhe contar a história de Mushkil Gusha. Mushkil Gusha significa "O dissipador de todas as dificuldades". Nossas dificuldades desapareceram por intermédio de Mushkil Gusha e devemos lembrá-lo sempre.
 Durante uma semana o homem seguiu sua rotina. Ia às montanhas, trazia lenha, comia alguma coisa, levava a lenha ao mercado e a vendia. Sempre encontrava comprador, sem dificuldade.

Mas chegou a quinta-feira seguinte e, como é comum entre os homens, o lenhador se esqueceu de contar a história de Mushkil Gusha. Nessa noite, já tarde, apagou-se o fogo na casa dos vizinhos. E, como não tinham com que voltar a acendê-lo, foram à casa do lenhador e disseram:
 - Vizinho, vizinho, por favor, dê-nos um pouco de fogo dessas suas lâmpadas maravilhosas que vemos brilhar através da janela.
 - Que lâmpadas? - perguntou o lenhador.
- Venha cá e veja - responderam.
O lenhador saiu e viu claramente a variedade de luzes que, vindas de dentro, brilhavam através de sua janela. Entrou e viu que a luz saía do monte de pedras que havia posto num canto. Mas os raios de luz eram frios e era impossível usá-los para acender fogo. Então, tornou a sair e disse:
- Sinto muito, vizinhos, não tenho fogo - e bateu-lhes a porta no nariz.
Os vizinhos ficaram aborrecidos e surpresos e voltaram para casa resmungando. E aqui eles abandonam nossa história. Rapidamente, o lenhador e sua filha, com medo que alguém visse o tesouro que possuíam, cobriram as brilhantes luzes com todos os trapos que encontraram. Na manhã seguinte, ao destampar as pedras, descobriram que eram gemas luminosas e preciosas.
 Uma a uma, levaram-nas às cidades dos arredores, onde as venderam por um preço enorme. Então, o lenhador decidiu construir um esplêndido palácio para ele e sua filha. Escolheram um lugar que ficava exatamente na frente do castelo do rei de seu país. Pouco tempo depois, um edifício maravilhoso estava construído.

 O rei tinha uma filha muito bonita que uma manhã, ao acordar, viu o castelo, que parecia de contos de fadas, bem em frente ao de seu pai. Muito surpresa, perguntou a seus criados:
 - Quem construiu esse castelo? Com que direito fazem uma coisa dessas tão perto do nosso lar?
 Os criados saíram e investigaram. Ao regressar, contaram à princesa tudo o que conseguiram saber. A princesa, muito zangada, mandou chamar a filha do lenhador. Porém, quando as duas meninas se conheceram e se falaram, logo tornaram-se boas amigas. Encontravam-se todos os dias e iam nadar e brincar juntas num regato que o rei mandara fazer para a princesa.  Alguns dias depois do primeiro encontro, a princesa tirou um colar lindo e valioso e pendurou-o numa árvore à beira do regato. Na volta, esqueceu-se de apanhá-lo e, ao chegar em casa, pensou que o tinha perdido. Refletindo melhor, porém. concluiu que tinha sido roubado pela filha do lenhador. Contou tudo ao pai, que mandou prender o lenhador e confiscou-lhe todos os bens. O homem foi posto na prisão, e sua filha levada para um orfanato. Como era costume no país, depois de algum tempo o lenhador foi retirado de sua cela e levado para praça pública, onde o acorrentaram a um poste, tendo pendurado ao pescoço um cartaz onde se lia:
 "E isto que acontece a quem rouba dos reis."
 A princípio, as pessoas juntavam-se à sua volta zombando dele e atirando-lhe coisas. O lenhador estava muito infeliz. Porém, como é comum entre os homens, logo se acostumaram com o velho sentado junto ao poste e lhe prestavam cada vez menos atenção. Às vezes lhe atiravam restos de comida, às vezes nem mesmo isso.
 Uma tarde, ouviu alguém dizer que era quinta-feira. De imediato veio-lhe à mente o pensamento de que logo seria a noite de Mushkil Gusha, "O dissipador de todas as dificuldades", a quem há tanto tempo se esquecera de comemorar. No mesmo instante em que esse pensamento lhe chegou à mente, um homem caridoso que passava jogou-lhe uma moeda.
 - Generoso amigo - chamou-o o lenhador - você me deu dinheiro que para mim não tem utilidade alguma. Mas se, em sua generosidade, puder comprar uma ou duas tâmaras e vir sentar-se comigo para comê-las, eu lhe ficaria eternamente grato.
 O homem saiu e comprou algumas tâmaras, sentou-se a seu lado e comeram juntos. Ao terminar, o lenhador contou-lhe a história de Mushkil Gusha.
 - Acho que você deve estar louco - disse-lhe o homem generoso.
 Mas era uma pessoa compreensiva e também enfrentava muitas dificuldades. Ao chegar em casa, depois desse incidente, percebeu que todos os seus problemas estavam resolvidos. Isto o fez pensar mais seriamente a respeito de Mushkil Gusha. Mas aqui ele deixa nossa história.  No dia seguinte, pela manhã, a princesa voltou ao lugar onde se banhara e, quando ia entrar na água, viu, no fundo do regato, uma coisa que parecia ser seu colar. Porém, no momento em que ia pegá-lo, espirrou, jogou a cabeça para trás, e viu que o que tomara por seu colar era apenas o reflexo dele na água. O colar estava pendurado no galho de uma árvore, no mesmo lugar onde o tinha deixado há muito tempo. Emocionada, apanhou-o e foi correndo contar ao rei o acontecido. Este ordenou que o lenhador fosse posto em liberdade e que lhe pedissem desculpas em público. Tiraram a menina do orfanato e todos viveram felizes para sempre.


É por causa de Mushkil Gusha que esta história, em qualquer de suas formas, é lembrada por alguém, em algum lugar do mundo, dia e noite, onde quer que exista gente. Tal como sempre tem sido contada, assim continuará a ser contada eternamente. Você quer repetir essa história nas noites de quinta-feira e ajudar, assim, o trabalho de Mushkil Gusha?

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Qualquer coisa não !

Sabe quando a gente se contenta com as coisas como estão, se conforma etc e tal? Pois é, um perigo isso. Como eu ainda respeito o meu poder de escolha e, às vezes, de indignação, acho interessante contar a história abaixo. É de Adriana Falcão, extraída do livro  "Sete histórias para contar".


Qualquer coisa serve 


Biscoito? A menina gostava.
Boneca? Gostava.
Dia de chuva? Gostava também.
Barata? Também gostava.
A menina gostava de qualquer coisa boa e de qualquer coisa ruim. Ela nem pensava. Ia logo gostando de qualquer brincadeira, de qualquer besteira, qualquer programa de televisão, de qualquer música, qualquer nota, qualquer lugar, qualquer um.
Nada precisava ser bom para agradar a menina. 
Tudo estava bom do jeito que estava.
E tudo que estava em volta dela foi ficando com uma preguiça de ficar melhor. E foi ficando de qualquer jeito.  Cada besteira, cada brincadeira, cada programa de televisão. Cada música, cada nota, cada um, cada lugar. 
Até que um dia, a menina ouviu alguém falar assim "Essa menina gosta de cada coisa..." 
E ela não gostou nem um pouco disso. 
Finalmente, existia uma coisa no mundo de que a menina não gostava.  
E passou a separar as coisas boas das coisas ruins. 
Mas o melhor é que, a partir de então, cada brincadeira, cada besteira, cada programa de televisão, cada música, cada nota, cada lugar, cada pessoa, cada coisa, tinha que ser melhor para agradar a menina. E, devagarzinho, aos pouquinhos, pedacinho por pedacinho, o mundo foi ficando melhor, 
junto com cada coisa.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Que história é essa !!

Sábado passado, fui apresentar o programa Que História é Essa, a convite de Elaine Gomes. Foi uma experiência fantástica, porque sempre participei do programa como contadora de histórias e nunca como apresentadora. E, para um sábado que já começava bem ficar melhor ainda, o contador de histórias convidado foi meu querido amigo João Luiz do Couto, educador, escritor, contador, cantador e amigão de muitos bons momentos. Conversamos muito, cantamos, contamos histórias juntos em duas horas que passaram muito rapidamente. Um das histórias que o João contou, que é de autoria dele, eu já tinha escutado algumas vezes. E sempre que ouço, gosto muito. E compartilho abaixo.


O elefante que não sabia escovar os dentes

Hoje você vai ler uma história diferente.
É a história de um elefante que não sabia escovar os dentes.

Era uma vez, num lugar muito afastado, um jovem elefante que estava com dentes cariados. A sua vida ornara-se uma verdadeira agonia. Um dente doía de noite e o outro doía de dia. Que sofrimento seria, imagine você, se os dois dentões do elefante de uma só vez resolvessem doer?!

Teve um dia que foi aquele Deus nos acuda. O pobre elefante, na feira, procurava ajuda. - Futuca os seus dentões com cabo de vassoura! – gritou o coelho, que ali vendia cenoura.
- Bota pimenta e vê se não se engana! – indicou o saltitante macaco, enquanto gritava: - olha a banana. Olha a banana!
Já as abelhas Margarida e Izabel, para acudir o amigo, prepararam um chazinho, bem quentinho, desses de limão com mel.
- Resolvo isso com um coice! Comigo é assim! – bufou no canto da feira o burro que vendia capim.

- Hei, seu grandão, tenho muito din-din. Se quiser eu posso comprar esses seus estragados dentes de marfim! – disse a astuta raposa, vendedora de galinhas. E o convidou para trás de sua banquinha.
- Oi seu elefante, eu sei de uma simpatia. – cochichou o pequenino furão, de dentro do buraco de uma melancia.
- Oh, senhor elefante, se não se importa, eu darei o meu ponto de vista: procure imediatamente a um dentista! – disse o galo do alto do seu cocoricó, que intercedeu ao dar por vista.

No dia seguinte, bem cedo, ao que o Sol ofereceu a sua linda luz, estava o jovem elefante no consultório da doutora Criszângela Avestruz. E a doutora, com um sorriso cativante, se aproximou do elefante, esticou o pescoço e pôs-se a trabalhar. Limpou e restaurou os dentes da frente, as duas presas e um molar. Constatou que todo o problema da dentição era simplesmente a  falta de uma cuidadosa e adequada escovação. E, ao perceber o seu dente torto, o informou que um aparelho resolveria. E, com uma voz suave, a doutora declamou a palavra “ortodontia”.

A doutora Avestruz  ensinou o jovem elefante a usar uma escova de dente bem macia, sempre em movimentos circulares, a limpar corretamente a língua, a gengiva e, naturalmente, também os dentes.  Ensinou-lhe ainda que, para escovar os dentes, tem que movimentar a escova como a um trenzinho: para trás e para frente.

Daquele dia em diante, as visitas ao dentista passaram a ser constantes. E lá o jovem elefante ia, pelo menos, de seis em seis meses. Quem diria, depois de tudo resolvido, por qualquer motivo, o jovem elefante sorria. E mostrava os seus dentões e coisa e tal. Não demorou muito, tornou-se garoto propaganda de um creme dental!

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

O Dom da História


Fiquei algum tempo sem postar uma história aqui. Coisas da vida, olhos doentes, alma mais ainda. Mas, de volta, pensei em quanto as histórias são curativas. E aí, pensei na história abaixo,  oferecida como presente pela mestre Clarissa Pinkola Estes.

O Dom da História

O amado Bal Shem Tov estava à morte e mandou chamar seus discípulos.
- Sempre fui o intermediário de vocês e, agora, quando eu me for, vocês terão que fazer isso sozinhos. Vocês conhecem o lugar da floresta onde eu invoco a Deus? Fiquem parados naquele lugar e ajam do mesmo modo. Vocês sabem acender a fogueira e sabem dizer a oração. Façam tudo e Deus virá.

Depois que Bal Shem Tov morreu, a primeira geração obedeceu exatamente as suas instruções. E Deus sempre veio.  Na segunda geração, porém, as pessoas já haviam se esquecido do jeito que se acendia a fogueira como Bal Shem Tov lhes ensinara. Mesmo assim, elas ficavam paradas no local especial da floresta, diziam a oração e... Deus vinha.

Na terceira geração, as pessoas já não se lembravam de como acender a fogueira, nem do local da floresta. Mas diziam a oração assim mesmo. E Deus vinha.

Na quarta geração, ninguém se lembrava de como se acendia a fogueira, ninguém sabia mais em que local exatamente da floresta deviam ficar e, finalmente, não conseguiam se recordar nem da própria oração. Mas uma pessoa ainda se lembrava da história sobre tudo aquilo. E essa pessoa relatou essa história em voz alta.
E Deus ainda veio...