terça-feira, 19 de junho de 2012

Ancestralidade e o arroz de Palma


Arroz de Palma é o primeiro romance do dramaturgo Francisco Azevedo. É também o primeiro romance a tratar da imigração portuguesa para o Brasil no século XX. Nele, o autor traz a ancestralidade, ao narrar a saga de uma família que vem para o Brasil em busca de uma vida melhor. O arroz do título foi jogado no casamento dos patriarcas, em 1908, e o grão será o fio condutor da história, como migalhas jogadas no labirinto da memória. Ao falar do livro e do tema, Azevedo diz “acredito, sim, nessa necessidade de olhar para trás, para as raízes. Hoje, quando tudo é questionado e se torna relativo, precisamos de pontos de referência, modelos que nos transmitam um mínimo de certeza. Ir às raízes, mais que olhar para trás, é olhar para o fundo, para o que não está na superfície. É olhar simbolicamente para o que nos alimenta. É, enfim, tentar entender o que se passa conosco com base também na experiência ancestral, tão rica e tão vasta”. Ele diz exatamente o que venho buscando com minhas histórias e pesquisas ultimamente. Abaixo, trecho do livro que parece dizer tudo sobre essa intrincada instituição chamada família. É belo. E para ser degustado serenamente. 


Família é prato difícil de preparar. São muitos ingredientes.
Reunir  todos é um problema... Não é para qualquer um.
Os truques, os segredos, o imprevisível.
Às vezes, dá até vontade de desistir...
Mas a vida... sempre arruma um jeito de nos entusiasmar e abrir o apetite.
O tempo põe a mesa, determina o número de cadeiras e os lugares.
Súbito, feito milagre, a família está servida.
Fulana sai a mais inteligente de todas.
Beltrano veio no ponto, é o mais brincalhão e comunicativo, unanimidade.
Sicrano, quem diria? Solou, endureceu, murchou antes do tempo.
Este é o mais gordo, generoso, farto, abundante.
Aquele, o que surpreendeu e foi morar longe.
Ela, a mais apaixonada.
A outra, a mais consistente...
Já estão aí? Todos? Ótimo.
Agora, ponha o avental, pegue a tábua, a faca mais afiada e tome alguns cuidados.
Logo, logo, você também estará cheirando a alho e cebola.
Não se envergonhe de chorar.  Família é prato que emociona.
E a gente chora mesmo. De alegria, de raiva ou de tristeza.
Primeiro cuidado: temperos exóticos alteram o sabor do parentesco.
Mas, se misturadas com delicadeza, estas especiarias, que quase sempre vêm da África e do Oriente
e nos parecem estranhas ao paladar tornam a família muito mais colorida,interessante e saborosa.
Atenção também com os pesos e as medidas.
Uma pitada a mais disso ou daquilo e, pronto: é um verdadeiro desastre.
Família é prato extremamente sensível.
Tudo tem de ser muito bem pesado, muito bem medido.
Outra coisa: é preciso ter boa mão, ser profissional.
Principalmente na hora que se decide meter a colher.
Saber meter a colher é verdadeira arte.
Uma grande amiga minha desandou a receita de toda a família, só porque meteu a colher na hora errada.
O pior é que ainda tem gente que acredita na receita da família perfeita.
Bobagem. Tudo ilusão.
Não existe Família à Oswaldo Aranha; Família à Rossini, Família à Belle Manière;
Família ao Molho Pardo (em que o sangue é fundamental para o preparo da iguaria).
Família é afinidade, é à Moda da Casa.
E cada casa gosta de preparar a família a seu jeito.
Há famílias doces. Outras, meio amargas. Outras apimentadíssimas.
Há também as que não têm gosto de nada, seria assim um tipo de Família Dieta, que você suporta só para manter a linha.
Seja como for, família é prato que deve ser servido sempre quente, quentíssimo. Uma família fria é insuportável, impossível de se engolir.
Enfim, receita de família não se copia, se inventa.  A gente vai aprendendo aos poucos, improvisando e transmitindo o que sabe no dia a dia. A gente cata um registro ali, de alguém que sabe e conta, e outro aqui, que ficou no pedaço de papel.
Muita coisa se perde na lembrança. Principalmente na cabeça de um velho já meio caduco como eu.
O que este veterano cozinheiro pode dizer é que, por mais sem graça, por pior que seja o paladar, família é prato que você tem que experimentar e comer.
Se puder saborear, saboreie. Não ligue para etiquetas.
Passe o pão naquele molhinho que ficou na porcelana, na louça, no alumínio ou no barro. Aproveite ao máximo.
Família é prato que, quando se acaba, nunca mais se repete. 


Um comentário:

Contador de histórias e arte-educador disse...

Que receita deliciosa... Amada, quando for preparar me convida pra jantar? Bjão nesse coração de mãe TEMPERADÍSSIMO!